quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Nice e a vida - Capítulo III

Chegamos ao terceiro capítulo completo da história. E aí? Está gostando? Pois logo teremos mais!!!


III. Conversa pouco menos que dolorosa

Poucos segundos após minha chegada em sua casa, voltei a ficar imóvel. A chuva que escorria pelas sinuosidades de meu corpo fazia-me tremer de frio. Eu continuava sem coragem de bater na porta, por mais sutil que fosse. Gradualmente os pingos foram aumentando, assim como os calafrios pelo corpo. Minha imobilidade já durava alguns minutos quando ele percebeu que havia alguém em frente à porta. Imaginei que minha sombra pudesse tê-lo assustado, mas logo concluí que não. Ele jamais se assustaria com essas coisas. Então abriu a porta e eu entrei, muda, molhada e espantada com a situação que acabara de encontrar.
Sem uma única pergunta, fui conduzida até a sala, ao lado esquerdo de um sofá, iluminada por resquícios de luz provenientes de um abajur. Na penumbra, só era possível observar a silhueta de seu corpo posicionado ao lado do meu, mesmo que ainda estivesse um pouco afastado. Foi preciso mais alguns minutos para se iniciar o diálogo.
Percebi sua hesitação em me perguntar como o encontrara. E para iniciar a própria conversa. Mas, aos poucos, a troca de palavras tornou-se fluente. Quis saber o porquê de ele ter sumido tão de repentinamente. O que me foi respondido ricocheteou em minha mente. Disse-me: “Era preciso fugir. Naquele momento me senti perseguido. Você sabia muito bem o motivo para me encontrar ali, o motivo pelo qual eu gosto tanto da escrita e, naquele dia, não me atrevera a escrever uma só palavra. Você sabia de tudo. Tinha conhecimento do contrato de escrita que fiz. Eu não tinha alternativa, a não ser fugir deles e me afastar de você. Para protegê-la e nada mais.”.
Achei muito estranho o fato dele ter dito que eu sabia o motivo de sua “fuga”. A única coisa de que me lembrava era de um tal Doutor C, com que fechara um contrato de escrita. Mas nem sabia o que era e nem como era este contrato, ele não me tinha dito.
Pedi uma melhor explicação e ele respondeu: “Chega um certo momento em que é preciso entregar as cartas e esclarecê-las. Este momento é agora. Aquele contrato de escrita de que lhe falei foi um acordo, com o Doutor C. Ele descobriu uma coisa, sobre minhas escritas, o modo como escrevo e fortaleço as palavras. Mas isto, não posso lhe detalhar agora. Com este contrato, o doutor me obrigaria a servi-lo, a obedecer seus comandos de escrita, caso contrário eu seria desmascarado. Eu estava vulnerável e só o assinei para ganhar um tempo para fugir. Então lhe encontrei naquele corredor, no momento de minha fuga. Era preciso fugir dele e dos seu aliados que a muito tempo perseguiram-me. Quando lhe disse sobre isso, eu tinha certeza do perigo dessa busca incansável por mim, mas não poderia deixar isso claro a você. E fugi”.
Foi estranho ouvi-lo. As palavras saíam de sua boca como farpas a atravessar meu coração. Ele não confiou em mim naquele dia. E isto me soou estranho. Lembro-me muito bem de suas palavras: “... não me siga nem espere nunca mais.” As duas últimas me deixaram pensativa. Como poderia ser fácil esquecê-lo depois de tanta conversa, tantos olhares? Não era possível. Não para mim. Demorei um bom tempo para me recompor e tentar continuar vivendo até encontrá-lo novamente. O que ainda me intrigava era o fato dele manter segredo quanto ao contrato com o Doutor C e o segredo atrelado a sua vida. Eu não conseguia mais ficar imóvel com tal situação. Segurei-o pelo braço e pedi para que olhasse para mim. Ficamos “cara a cara”, fitamo-nos, e reconheci em seu olhar o desespero de muita mentira e segredo fundidos ao fato de termos ficado longe. Larguei-o e fui ao parapeito da janela para conferir se a penumbra de uma manhã chuvosa era responsável pelo que acontecera instantes antes. Ele abraçou-me por trás e fez com que caíssemos no sofá, juntos, imóveis, intactos. Seu perfume servia-me de consolo por tanto tempo perdido. A essência de nossas almas era de uma simplicidade efêmera, porém real e valiosa. Nossos rostos, gélidos e pálidos, se encontraram. Era possível sentir o calor de suas aventuras e do meu amor. Um beijo foi o responsável por selar nosso encontro. Diante da chuva, dormimos naquele fim de manhã. A conversa de outrora já nos tinha cansado demais. Deixamos a preocupação de lado e dormimos.
Senti-me muito estranha ao acordar. Estava em outro lugar. Não sabia onde. Mas fui surpreendida quando ele entrou no quarto segurando uma rosa e beijando-me para que acordasse. Fui presenteada. Acabava de se passar o fim da tarde e iniciava-se a noite. Enquanto meu amado poeta entregava-me a flor, percebi que estava no quarto de sua casa. De lá, voltamos à sala e debatemos sobre a vida, nossas vidas, o que acontecera nesses anos. Andei até o banheiro, preparando-me para um banho e ele, carinhosamente, foi preparar-nos um jantar.
Voltei para a sala e observei as velas em cima da mesa, a essência de primavera e seu corpo, sentado a minha espera. Aproximei-me da cadeira onde sentei e, junto a ele, comi. Era um delicioso filé mignon com batatas levemente rosadas e outros legumes junto a um molho de cogumelos que sempre revelei gostar.

Ah! E como esse aromático molho me fazia bem! Ele representava as ceias natalinas, os almoços calorosos e todos os outros momentos de minha infância familiar. Mas esqueçam desse saboroso pensamento e afastem os sentidos gustativos. Enfim, era amor que não acabava mais.

 Ao trocar olhares, percebemos o quão difícil foi estar longe. Por um momento pensei que nunca mais teríamos problemas, que sempre ficaríamos juntos. Mas, como nos atuais contos de “fada”, a existência do “felizes para sempre” foi questionada e reafirmada negativamente. Não estávamos prontos para ficar juntos mais uma vez. Isto que ele me disse. E completou: “precisamos de um tempo parar refletir sobre os caminhos tomados por nossa história, devemo-nos amar cada vez mais. Só que a situação está difícil para mim. Estou sendo pressionado por todos, por tudo. Tenho medo de que alguma coisa aconteça a você caso fiquemos juntos. O Doutor C e os outros me perseguirão. O horror atrelado à raiva me consome.” A conversa terminou, achei estranha sua posição diante a situação, mas estava demasiada cansada para questionar. Ouvimos algumas músicas que relembravam os velhos tempos, de escola, de criança, de juventude. Então o sono voltou e dormimos entrelaçados em sua cama.
Acordei, dessa vez antes que ele. Tomei um banho, preparei um café e fiquei a sua espera. Como ele não acordava, comecei a observar sua casa, seus móveis, suas coisas. Foi aí que encontrei um bilhete, próximo a uns cadernos em uma mesa de canto. Mais especificamente um recado. Intitulado como: “para um tolo”, era de autoria do Doutor C. Este avisava-lhe do tempo que tinha para se entregar, caso contrário eles já haviam descoberto o local onde morava, pois o tinham visitado na noite passada. Suspirei. Meu espanto foi enorme. O nervosismo acabara de iniciar e percebi o perigo que estávamos correndo. Observando bem, não me lembrava de ter visto o papel naquele local. Concluí que só poderiam ter entrado na casa ontem, depois que dormimos. Lágrimas correram por minha face e tive medo de estar sendo conivente para uma situação como em Hamlet, onde a morte foi a protagonista e, ao mesmo tempo, foi o clímax da situação. Bastou o poeta acordar para descobrir por mim, o que acabara de encontrar.
Não conseguimos ao menos encostar nos lábios a comida. O ódio tornava-se visível. Pegamos algumas coisas, entre roupas e documentos importantes para então, sairmos daquela casa sem o intuito de voltar. Os passos largos e apressados demonstravam a rigidez de nosso amor. Conseguimos, inicialmente, um hotel em uma cidade vizinha, porém afastada da circulação comercial e turística. Instalamos-nos e por horas não trocamos uma sequer palavra sobre o acontecido, ou o que poderia vir a acontecer. Nossos lábios úmidos tocaram-se e, por um segundo, a conexão entre nossas almas era mais forte. Um beijo serviu como encerramento para o dia exaustivo. Durante a noite, sem conseguir dormir, passei meu tempo entretida em um livro que comprara em uma loja local. Falava sobre a vida perigosa de um detetive em busca da solução para os crimes mais ameaçadores. Algo que lembrou-me da situação de outrora. Então adormeci junto às palavras, junto ao poeta.

Um amanhecer se iniciava e uma imensa clareia abriu-se em minha mente. O que seria de nós, nas mãos daqueles doidos que procuravam meu querido poeta? Era uma pergunta que não tinha resposta. Bastou-nos tomar um café e ir atrás de informações. Então ocorreu o que menos esperávamos. Chegando ao antigo saguão do hotel colonial onde havíamos ficado, um tiroteio nos amedrontou. Eram visíveis as balas atravessando vasos, quadro, pessoas e crianças. O medo em nossos olhos e nos olhos de todos era extremamente nítido. Saímos correndo, mas fomos surpreendidos por uma armadilha. Eu acabara de me separar do poeta. Uns sujeitos vestidos de preto levaram-no de mim e eu fora pra longe dele. Outros homens me seguraram. O acetinado de suas roupas mostrava-me a classe com que bolaram a enrascada. Nossas vidas estavam sendo vigiadas há tempos. Eu temia tudo e todos. As cordas passadas em minha volta não me deixavam mexer sequer um músculo, o pano em minha boca amordaçava-me e, ao jogarem-me dentro de um carro, bati a cabeça em uma caixa metálica e reluzente ao meu lado, desmaiando. 

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