Relembrando o segundo capítulo completo da história de Nice! Espero que gostem e apreciem!!!
II.
O início de um encontro
Eu recentemente havia me mudado para aquela
cidade. Depois da morte de meu pai, eu e minha mãe não tivemos outra opção. Ela
foi à procura de um emprego e eu de
dar continuidade ao último ano de minha formação estudantil antes da faculdade.
Foram tempos muito difíceis. Ao encontrar um emprego, minha mãe tornou-se ainda
menos presente e eu passava mais tempo na escola, do que em minha própria casa.
Era tudo diferente pra mim, novos amigos, nova turma, nova escola. E em meio ao
caos só não pude deixar de notar um garoto um tanto quanto diferente. Nunca
tinha falado com ele diretamente. Muito menos lembrava-me de seu nome. Aí que
mais me culpo.
A cada dia que se passava minha curiosidade
em descobrir quem era este garoto só aumentava. Mas evitei me aproximar, não
queria que ninguém percebesse, ou que isso, de alguma forma, pudesse afastá-lo.
Durante muito tempo o segui. Só que de nada adiantou, ele mudou de escola e
temi que a culpa disso fosse minha. Para completar, minha vida já estava muito
turbulenta. Com minha mãe doente não havia o que fazer. Foi o mesmo que esperar
sentado o recibo de morte confirmada. A doença já estava grave e os recursos
para o tratamento eram razoavelmente escassos. Ela morreu. E as lágrimas
despejadas serviram simplesmente para confirmar o preço lapidado pela tormenta
que resumia a vida dela. Eu estava sozinha novamente, como nos longos períodos em
que passava na escola. Sozinha, deveria trilhar meus caminhos em busca de um
rumo para minha vida. O turbilhão já havia sumido. E o garoto também.
Passaram-se mais uns cinco anos. Minha vida
estava basicamente estável. Nada de mais, nada de menos. Sem excessos ou
virtudes. Era um jogo de sobrevivência. Comia para não morrer de fome, estudava
para conseguir, talvez, um emprego melhor. Sim, eu trabalhava como balconista em
uma livraria. Um sebo na verdade. E ganhava muito pouco.
Na faculdade onde estudava eram poucos os
amigos. Na verdade, nenhum. Só os famosos colegas de sala que nada mais fizeram
a não ser acompanharem-me no intervalo. E uma série de trabalhos estava por vir.
Eu, como sempre, estava só nesta jornada, passando o dia inteiro na biblioteca
da faculdade estudando, fazendo e refazendo os trabalhos. Pesquisando e
pesquisando mais ainda. E foi em um desses dias, à tarde, que reconheci uma
pessoa que nunca tinha visto por lá e por alguns anos não via em lugar algum.
Era ele. O garoto. Mas não tive coragem de me aproximar. Na realidade foram
dias até que eu me adaptasse a sua presença diária e repentina na biblioteca.
Até que ele mesmo lançou-me olhares. Cada dia um mais intrigante. E resolvi me
aproximar. Cabelos embaraçados ao vento e com as armas que eu precisava para me
afastar rapidamente se for preciso: minhas pernas e minha coragem.
Ele era de uma sensibilidade imensa, a
educação e o cuidado como o de quem acaricia as pétalas de uma rosa à espera do
orvalho. Seu coração era maior do que o de Iracema, a virgem dos lábios de mel.
Seu aroma era como um mar de lírios onde os mais nobres livros devem repousar.
E seu olhar me intimou a uma paixão.
Ele não era tão alto, tinha os cabelos
amarelados como o sol amanhecido e escuros como o entardecer. Até o momento só
trocávamos olhares. Então resolvi começar a falar. Contei-lhe da escola onde o
tinha visto pela primeira vez, do meu curso, de quando o vi novamente, do meu
gosto por livros. E não pude deixar de perguntar dele. Sobre o que aconteceu
durante nosso “desencontro” imprevisível, sobre os gostos e desgostos, e sobre
os projetos de vida. Ele, misteriosamente, respondeu-me que adorava ler e
escrever seus poemas, que durante sua saída daquela escola (em que estudamos
juntos) ficou escrevendo descontroladamente. E por fim, disse-me que cada passo
de seu dia era uma trama de mistérios onde um poeta, às vezes romântico, tinha
que preocupar-se com as possibilidades e desafios encontrados. E que não seria
difícil dialogar com uma pessoa tão exploradora de livros como ele. Era a mim
que ele se referia. Ele saiu. Eu saí. E naquela biblioteca, os livros eram
cúmplices de um dos momentos mais importantes de minha vida. O momento do
reencontro com meu passado, com o garoto que por tanto tempo me intrigou. Cada
página, cada letra, ouvia a suave voz do poeta e da dama. Uma história acabava
de começar e o “Era uma vez...” provinha dos saberes entrelaçados em cada livro
ali presente. A luz apagou-se, e na penumbra, a cadeira onde ele havida sentado
ficou a espera de um novo amanhecer, onde novas conversas tão enigmáticas e
apaixonantes seriam tecidas e contracenadas por tão bons atores como nós mesmo
fomos.
Por mais de um mês ficamos a nos encontrar no
mesmo local. Para conversar. Somente. E ouvir de sua adocicada voz, resquícios
dos poemas mais atingíveis que já ouvi. Pelo menos para mim. Todos, sem
exceção. Durante muito tempo, muitos dias e semanas. Minha vida realmente teria
mudado. Eu estava apaixonada. Por ele. Pelo poeta. E cada vez mais feliz por
isso.
Havia dias em que ele me levava rosas. Das
mais perfumadas e acaloradas que eu já tinha visto. O aroma conseguia ser tão
presente quanto o dele. O carinho em suas atitudes, em sua voz,
sensibilizava-me. Clareava meus caminhos. Exalava fragrâncias em minha vida. As
longas conversas estavam longe, mas muito longe, da monotonia de outros tempos.
Eu era uma nova moça, uma moça-mulher. E como, cada vez mais, ele me encantava
eu não sabia. Era amor na certa. Ou dó de um pobre poeta desalmado. Cujos
poemas não serviriam para nada além de alimentar-me as lágrimas suavizadas pelas
olheiras das noites mal dormidas. As noites em que pensei nele e em sua poesia.
O mundo mudara para mim. De uns tempos pra cá
a vida era a semelhança de uma certeza que eu ainda deveria confirmar. E todos
os acontecimentos serviam de afirmação para cada declaração milimetricamente misteriosa.
Nosso envolvimento, ao passar dos dias, era firmado por mais um cadeado que nos
unia. Eu acabara de conhecer a paixão. Que segundo ele é a “cápsula envolvente
de um amor platônico e idealizado como os românticos o fizeram”.
As semanas corriam e já se passara mais de
três meses. Percebi uma repentina mudança em seu comportamento. O medo em seu
olhar era cada vez mais presente. Seus poemas tornavam-se menos
“entrelaçantes”. Seu sorriso desatava a cada pessoa que passava despercebida, o
que nunca antes acontecera. As conversas ficaram mais rápidas e sucintas. O
amor era derretido e a cada instante uma nova gota desperdiçada se perdia no
mar de lágrimas provenientes de mim. Todas as noites mal dormidas foram
transformadas em noites de tormenta e choro, muita lágrima derramada. Muita
falta de pensamento. Eu não sabia o que acontecera. A situação, a cada momento,
ficava mais fora de alcance.
Foi quando, em um dia, antes de chegar à
biblioteca, nosso local de encontro fora substituído por um corredor. Aquele
corredor. Onde ele singelamente me disse que precisava retomar as escritas, que
eu sabia por que ele estava ali. Mas eu não sabia. Não tinha a mínima ideia. E
ainda afirmou que achavam que o estavam perseguindo e procurando, e não devia
deixar as escritas e reflexões em perigo. Eu via o medo em seus olhos. Mas não
tive alternativas quando ele me fez prometer que não seguiria seu caminho e nem
iria procurá-lo mais.
Foi intrigante e misterioso. Ele me deixou
só. Num corredor escuro e sem saber o que fazer. Sem rumo. Ele tornava-se, a
cada instante, mais inatingível. Era um poeta, mas um poeta inatingível.
E então fui à sua
procura, contrariando a promessa, como já lhes contei. E o encontrei em sua
casa diante a rala chuva que escorria em minha face, desviando em meus lábios e
inundando meu corpo. Finalmente após dois anos pude reencontrá-lo. Mas nem tudo
estava como pensei.
O mundo havia mudado, assim como ele, suas
atitudes, seu endereço (que na cadeira da biblioteca me confessara e me custou
descobrir o novo, mas o havia feito) sua vida, a minha vida e o seu amor. Era
difícil e doloroso vê-lo assim. Mas já era hora de conhecer as “cartas” deste
“baralho”. E como num jogo de xadrez, dei-lhe o “xeque-mate”.
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