terça-feira, 9 de setembro de 2014

Nice e a vida - Capítulo II

Relembrando o segundo capítulo completo da história de Nice! Espero que gostem e apreciem!!!

II. O início de um encontro

Eu recentemente havia me mudado para aquela cidade. Depois da morte de meu pai, eu e minha mãe não tivemos outra opção. Ela foi à procura de um emprego e eu de dar continuidade ao último ano de minha formação estudantil antes da faculdade. Foram tempos muito difíceis. Ao encontrar um emprego, minha mãe tornou-se ainda menos presente e eu passava mais tempo na escola, do que em minha própria casa. Era tudo diferente pra mim, novos amigos, nova turma, nova escola. E em meio ao caos só não pude deixar de notar um garoto um tanto quanto diferente. Nunca tinha falado com ele diretamente. Muito menos lembrava-me de seu nome. Aí que mais me culpo.
A cada dia que se passava minha curiosidade em descobrir quem era este garoto só aumentava. Mas evitei me aproximar, não queria que ninguém percebesse, ou que isso, de alguma forma, pudesse afastá-lo. Durante muito tempo o segui. Só que de nada adiantou, ele mudou de escola e temi que a culpa disso fosse minha. Para completar, minha vida já estava muito turbulenta. Com minha mãe doente não havia o que fazer. Foi o mesmo que esperar sentado o recibo de morte confirmada. A doença já estava grave e os recursos para o tratamento eram razoavelmente escassos. Ela morreu. E as lágrimas despejadas serviram simplesmente para confirmar o preço lapidado pela tormenta que resumia a vida dela. Eu estava sozinha novamente, como nos longos períodos em que passava na escola. Sozinha, deveria trilhar meus caminhos em busca de um rumo para minha vida. O turbilhão já havia sumido. E o garoto também.
Passaram-se mais uns cinco anos. Minha vida estava basicamente estável. Nada de mais, nada de menos. Sem excessos ou virtudes. Era um jogo de sobrevivência. Comia para não morrer de fome, estudava para conseguir, talvez, um emprego melhor. Sim, eu trabalhava como balconista em uma livraria. Um sebo na verdade. E ganhava muito pouco.
Na faculdade onde estudava eram poucos os amigos. Na verdade, nenhum. Só os famosos colegas de sala que nada mais fizeram a não ser acompanharem-me no intervalo. E uma série de trabalhos estava por vir. Eu, como sempre, estava só nesta jornada, passando o dia inteiro na biblioteca da faculdade estudando, fazendo e refazendo os trabalhos. Pesquisando e pesquisando mais ainda. E foi em um desses dias, à tarde, que reconheci uma pessoa que nunca tinha visto por lá e por alguns anos não via em lugar algum. Era ele. O garoto. Mas não tive coragem de me aproximar. Na realidade foram dias até que eu me adaptasse a sua presença diária e repentina na biblioteca. Até que ele mesmo lançou-me olhares. Cada dia um mais intrigante. E resolvi me aproximar. Cabelos embaraçados ao vento e com as armas que eu precisava para me afastar rapidamente se for preciso: minhas pernas e minha coragem.
Ele era de uma sensibilidade imensa, a educação e o cuidado como o de quem acaricia as pétalas de uma rosa à espera do orvalho. Seu coração era maior do que o de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Seu aroma era como um mar de lírios onde os mais nobres livros devem repousar. E seu olhar me intimou a uma paixão.
Ele não era tão alto, tinha os cabelos amarelados como o sol amanhecido e escuros como o entardecer. Até o momento só trocávamos olhares. Então resolvi começar a falar. Contei-lhe da escola onde o tinha visto pela primeira vez, do meu curso, de quando o vi novamente, do meu gosto por livros. E não pude deixar de perguntar dele. Sobre o que aconteceu durante nosso “desencontro” imprevisível, sobre os gostos e desgostos, e sobre os projetos de vida. Ele, misteriosamente, respondeu-me que adorava ler e escrever seus poemas, que durante sua saída daquela escola (em que estudamos juntos) ficou escrevendo descontroladamente. E por fim, disse-me que cada passo de seu dia era uma trama de mistérios onde um poeta, às vezes romântico, tinha que preocupar-se com as possibilidades e desafios encontrados. E que não seria difícil dialogar com uma pessoa tão exploradora de livros como ele. Era a mim que ele se referia. Ele saiu. Eu saí. E naquela biblioteca, os livros eram cúmplices de um dos momentos mais importantes de minha vida. O momento do reencontro com meu passado, com o garoto que por tanto tempo me intrigou. Cada página, cada letra, ouvia a suave voz do poeta e da dama. Uma história acabava de começar e o “Era uma vez...” provinha dos saberes entrelaçados em cada livro ali presente. A luz apagou-se, e na penumbra, a cadeira onde ele havida sentado ficou a espera de um novo amanhecer, onde novas conversas tão enigmáticas e apaixonantes seriam tecidas e contracenadas por tão bons atores como nós mesmo fomos.
Por mais de um mês ficamos a nos encontrar no mesmo local. Para conversar. Somente. E ouvir de sua adocicada voz, resquícios dos poemas mais atingíveis que já ouvi. Pelo menos para mim. Todos, sem exceção. Durante muito tempo, muitos dias e semanas. Minha vida realmente teria mudado. Eu estava apaixonada. Por ele. Pelo poeta. E cada vez mais feliz por isso.
Havia dias em que ele me levava rosas. Das mais perfumadas e acaloradas que eu já tinha visto. O aroma conseguia ser tão presente quanto o dele. O carinho em suas atitudes, em sua voz, sensibilizava-me. Clareava meus caminhos. Exalava fragrâncias em minha vida. As longas conversas estavam longe, mas muito longe, da monotonia de outros tempos. Eu era uma nova moça, uma moça-mulher. E como, cada vez mais, ele me encantava eu não sabia. Era amor na certa. Ou dó de um pobre poeta desalmado. Cujos poemas não serviriam para nada além de alimentar-me as lágrimas suavizadas pelas olheiras das noites mal dormidas. As noites em que pensei nele e em sua poesia.
O mundo mudara para mim. De uns tempos pra cá a vida era a semelhança de uma certeza que eu ainda deveria confirmar. E todos os acontecimentos serviam de afirmação para cada declaração milimetricamente misteriosa. Nosso envolvimento, ao passar dos dias, era firmado por mais um cadeado que nos unia. Eu acabara de conhecer a paixão. Que segundo ele é a “cápsula envolvente de um amor platônico e idealizado como os românticos o fizeram”.
As semanas corriam e já se passara mais de três meses. Percebi uma repentina mudança em seu comportamento. O medo em seu olhar era cada vez mais presente. Seus poemas tornavam-se menos “entrelaçantes”. Seu sorriso desatava a cada pessoa que passava despercebida, o que nunca antes acontecera. As conversas ficaram mais rápidas e sucintas. O amor era derretido e a cada instante uma nova gota desperdiçada se perdia no mar de lágrimas provenientes de mim. Todas as noites mal dormidas foram transformadas em noites de tormenta e choro, muita lágrima derramada. Muita falta de pensamento. Eu não sabia o que acontecera. A situação, a cada momento, ficava mais fora de alcance.
Foi quando, em um dia, antes de chegar à biblioteca, nosso local de encontro fora substituído por um corredor. Aquele corredor. Onde ele singelamente me disse que precisava retomar as escritas, que eu sabia por que ele estava ali. Mas eu não sabia. Não tinha a mínima ideia. E ainda afirmou que achavam que o estavam perseguindo e procurando, e não devia deixar as escritas e reflexões em perigo. Eu via o medo em seus olhos. Mas não tive alternativas quando ele me fez prometer que não seguiria seu caminho e nem iria procurá-lo mais.
Foi intrigante e misterioso. Ele me deixou só. Num corredor escuro e sem saber o que fazer. Sem rumo. Ele tornava-se, a cada instante, mais inatingível. Era um poeta, mas um poeta inatingível.
E então fui à sua procura, contrariando a promessa, como já lhes contei. E o encontrei em sua casa diante a rala chuva que escorria em minha face, desviando em meus lábios e inundando meu corpo. Finalmente após dois anos pude reencontrá-lo. Mas nem tudo estava como pensei.

O mundo havia mudado, assim como ele, suas atitudes, seu endereço (que na cadeira da biblioteca me confessara e me custou descobrir o novo, mas o havia feito) sua vida, a minha vida e o seu amor. Era difícil e doloroso vê-lo assim. Mas já era hora de conhecer as “cartas” deste “baralho”. E como num jogo de xadrez, dei-lhe o “xeque-mate”.

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