quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Nice e a vida - Capítulo IV - Parte 2

...


Imaginei ser outro dia quando acordei e vi uma garrafa de água jogada ao meu lado. Estranha essa preocupação comigo, mas de alguma maneira queriam-me viva. Pelo que parecia, a garrafa estava lacrada e mesmo se não estivesse eu teria que tomar, estava morrendo de sede. Tomei e nada me aconteceu. Estava quente ali e senti um vento mais fresco quando abriram repentinamente a porta pela qual passaram ontem. O mesmo homem que sentara na cadeira puxou-me para que eu levantasse e fosse com ele. Era impossível revidar e cedi facilmente. Saímos da sala. Percorremos um enorme e escuro corredor cujas outras portas estavam fechadas e não consegui reparar em nada. Somente no chão sujo, nas muitas lâmpadas queimadas e no silêncio recíproco. Fui levada para o lado de fora de algo que parecia uma fábrica. Sem pintura alguma, deparei-me com tijolos envelhecidos, paredes cheias de musgo e sofrendo com as chuvas. O lugar era bem antigo. Cercado de árvores e de uma imensidão de modo que não era possível ver muros ou divisões no horizonte. Tudo isso foi confirmado quando fui novamente jogado em um carro com as mãos e pés amarrados. O caminho até os portões, do que agora já parecia uma fazenda, foi longo e só percebi quando pararam para abrir passagem e pude me levantar um pouco para vê-lo. Mas, quando perceberam o que chamaram de “atrevimento”, tive um monitoramento especial de um cara ao lado do motorista. Eu não conseguia perceber o tempo passar, só sei que demorou para chegarmos a um lugar repleto de árvores de todos os tipos. Quase não via o sol em meio aos galhos e folhas de todas as larguras e cores. Como nas fotos encontradas na mesa onde os homens vasculhavam na noite passada.
Fui retirada e recebida com as mais ásperas palavras, quando ele me disse:
­– Saia logo desse carro e trate de ficar quieta. Qualquer barulho e você não sairá viva dessa. ­
Fiquei amedrontada no momento, mas não foi o que me impediu de mandar-lhe calar a boca e dizer que meu poeta amado viria me salvar das suas mãos.
Seus canalhas! – eu disse rispidamente.
Ele retribuiu-me com um forte tapa e com meu rosto avermelhado, caí.
Sua besta, não sabe com quem está se metendo. Só não lhe mato agora porque vou receber uma boa quantia entregando-a viva. Espero que cale essa maldita... – Foi o que ouvi dele, antes de desmaiar.

Com o passar do tempo eu sentia o frio aderir à minha pele, congelando-me dos pés à alma. Acordando aos poucos percebi que estava em uma casa, ou algo do tipo, só que de madeira. Em um quarto cuja porta estava aberta. Estranhei. Onde estariam a segurança e os homens? Então me levantei, andei pela casa. Vi como era bem mais cheirosa e arrumada do que a fábrica onde ficara. Porém, com as janelas trancadas. E foi olhando através de uma delas que percebi os guardas armados ao redor do lugar. Observando de janela em janela, contei uns cinco homens.

Continua...



sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Nice e a vida - Capítulo IV - Parte 1

IV. Levada para longe

Acordei. Já não estava mais no carro onde perdi a consciência. O ambiente escuro deixava-me com medo. Sem janelas visíveis, pensei como era difícil respirar em tal lugar e por que me trouxeram aqui. Será que queriam matar-me? Era quase impossível responder, eu acabara de acordar e não vira sequer sinal de vida. O calor estava insuportável, assim como o aroma podre de morte, de sangue. Devia ser o local onde matavam muitas pessoas, pois o cheiro era horrível. Eu não conseguia me mexer, não tinha forças nem para levantar. Comecei a observar o lugar a minha volta, visível apenas pela faixa de luz que passava através da fresta embaixo de uma porta. Tinham caixas e mais caixas amontoadas por todos os lados, muita poeira e lixo ao redor. Observei perto de mim uma mancha enorme de sangue, onde alguém talvez tentou fugir e foi pego em flagrante. E morto em seguida. Vi uma mesa ao canto com uma cadeira, dentro deste cômodo pouco maior que um galpão ou uma garagem. O teto de madeira rangia como se fosse mais antigo que as próprias paredes. O silêncio ricocheteou em minha mente, de forma que pensei estar sozinha. Não por muito tempo.
Ouvi o barulho de passos cada vez mais altos. Então a porta foi aberta. Não se importaram muito com minha presença. Dois homens se posicionaram perto da mesa e outro se sentou na cadeira. Mexiam em papéis, como se procurassem algo de significante importância. Só então repararam que eu estava ali, olhando-os. O mais próximo que estava em pé foi se aproximando. Loiro como um girassol, puxou-me pelo braço. Fui arremessada para o lado oposto do galpão e senti a dor de ter o corpo jogado em cima de caixas de madeira. Do corte em meu braço escorria um líquido que lembrava minha origem, meu coração partido. Era o meu sangue. E não deixei de imaginar quantas outras pessoas não tiveram seu corpo machucado naquele lugar. Difícil imaginar.

Olhei novamente para os homens, tomando cuidado para que não observassem minha atitude. Acabavam de mexer na bagunça em cima da mesa, retirando fotos, jornais, textos. Folhas e mais folhas com alguma serventia. Saíram. Esperei até o momento em que fecharam a porta para me levantar e ir em direção à desordem que deixaram. Via em meio aos papéis, fotos do poeta, textos dele rasgados, e um local estranho em outras imagens. Esse, cheio de árvores e repleto de escuridão. Dei mais uma olhada por cima, para ver se encontrava algo de delator. Mas não. Não havia sequer pista de onde eu estaria, ou mesmo da localização do meu poeta. Voltei para meu canto. Deveria ser tarde, o que eu não previ pela falta de luminosidade, pois a fresta da porta certamente não deixava passar a luz do dia. Eu sabia devido ao cansaço que consumia-me. Deitei e tentei dormir com tamanha preocupação.

Continua...

Espero que estejam gostando! Daqui em diante só partes inéditas no blog!

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Nice e a vida - Capítulo III

Chegamos ao terceiro capítulo completo da história. E aí? Está gostando? Pois logo teremos mais!!!


III. Conversa pouco menos que dolorosa

Poucos segundos após minha chegada em sua casa, voltei a ficar imóvel. A chuva que escorria pelas sinuosidades de meu corpo fazia-me tremer de frio. Eu continuava sem coragem de bater na porta, por mais sutil que fosse. Gradualmente os pingos foram aumentando, assim como os calafrios pelo corpo. Minha imobilidade já durava alguns minutos quando ele percebeu que havia alguém em frente à porta. Imaginei que minha sombra pudesse tê-lo assustado, mas logo concluí que não. Ele jamais se assustaria com essas coisas. Então abriu a porta e eu entrei, muda, molhada e espantada com a situação que acabara de encontrar.
Sem uma única pergunta, fui conduzida até a sala, ao lado esquerdo de um sofá, iluminada por resquícios de luz provenientes de um abajur. Na penumbra, só era possível observar a silhueta de seu corpo posicionado ao lado do meu, mesmo que ainda estivesse um pouco afastado. Foi preciso mais alguns minutos para se iniciar o diálogo.
Percebi sua hesitação em me perguntar como o encontrara. E para iniciar a própria conversa. Mas, aos poucos, a troca de palavras tornou-se fluente. Quis saber o porquê de ele ter sumido tão de repentinamente. O que me foi respondido ricocheteou em minha mente. Disse-me: “Era preciso fugir. Naquele momento me senti perseguido. Você sabia muito bem o motivo para me encontrar ali, o motivo pelo qual eu gosto tanto da escrita e, naquele dia, não me atrevera a escrever uma só palavra. Você sabia de tudo. Tinha conhecimento do contrato de escrita que fiz. Eu não tinha alternativa, a não ser fugir deles e me afastar de você. Para protegê-la e nada mais.”.
Achei muito estranho o fato dele ter dito que eu sabia o motivo de sua “fuga”. A única coisa de que me lembrava era de um tal Doutor C, com que fechara um contrato de escrita. Mas nem sabia o que era e nem como era este contrato, ele não me tinha dito.
Pedi uma melhor explicação e ele respondeu: “Chega um certo momento em que é preciso entregar as cartas e esclarecê-las. Este momento é agora. Aquele contrato de escrita de que lhe falei foi um acordo, com o Doutor C. Ele descobriu uma coisa, sobre minhas escritas, o modo como escrevo e fortaleço as palavras. Mas isto, não posso lhe detalhar agora. Com este contrato, o doutor me obrigaria a servi-lo, a obedecer seus comandos de escrita, caso contrário eu seria desmascarado. Eu estava vulnerável e só o assinei para ganhar um tempo para fugir. Então lhe encontrei naquele corredor, no momento de minha fuga. Era preciso fugir dele e dos seu aliados que a muito tempo perseguiram-me. Quando lhe disse sobre isso, eu tinha certeza do perigo dessa busca incansável por mim, mas não poderia deixar isso claro a você. E fugi”.
Foi estranho ouvi-lo. As palavras saíam de sua boca como farpas a atravessar meu coração. Ele não confiou em mim naquele dia. E isto me soou estranho. Lembro-me muito bem de suas palavras: “... não me siga nem espere nunca mais.” As duas últimas me deixaram pensativa. Como poderia ser fácil esquecê-lo depois de tanta conversa, tantos olhares? Não era possível. Não para mim. Demorei um bom tempo para me recompor e tentar continuar vivendo até encontrá-lo novamente. O que ainda me intrigava era o fato dele manter segredo quanto ao contrato com o Doutor C e o segredo atrelado a sua vida. Eu não conseguia mais ficar imóvel com tal situação. Segurei-o pelo braço e pedi para que olhasse para mim. Ficamos “cara a cara”, fitamo-nos, e reconheci em seu olhar o desespero de muita mentira e segredo fundidos ao fato de termos ficado longe. Larguei-o e fui ao parapeito da janela para conferir se a penumbra de uma manhã chuvosa era responsável pelo que acontecera instantes antes. Ele abraçou-me por trás e fez com que caíssemos no sofá, juntos, imóveis, intactos. Seu perfume servia-me de consolo por tanto tempo perdido. A essência de nossas almas era de uma simplicidade efêmera, porém real e valiosa. Nossos rostos, gélidos e pálidos, se encontraram. Era possível sentir o calor de suas aventuras e do meu amor. Um beijo foi o responsável por selar nosso encontro. Diante da chuva, dormimos naquele fim de manhã. A conversa de outrora já nos tinha cansado demais. Deixamos a preocupação de lado e dormimos.
Senti-me muito estranha ao acordar. Estava em outro lugar. Não sabia onde. Mas fui surpreendida quando ele entrou no quarto segurando uma rosa e beijando-me para que acordasse. Fui presenteada. Acabava de se passar o fim da tarde e iniciava-se a noite. Enquanto meu amado poeta entregava-me a flor, percebi que estava no quarto de sua casa. De lá, voltamos à sala e debatemos sobre a vida, nossas vidas, o que acontecera nesses anos. Andei até o banheiro, preparando-me para um banho e ele, carinhosamente, foi preparar-nos um jantar.
Voltei para a sala e observei as velas em cima da mesa, a essência de primavera e seu corpo, sentado a minha espera. Aproximei-me da cadeira onde sentei e, junto a ele, comi. Era um delicioso filé mignon com batatas levemente rosadas e outros legumes junto a um molho de cogumelos que sempre revelei gostar.

Ah! E como esse aromático molho me fazia bem! Ele representava as ceias natalinas, os almoços calorosos e todos os outros momentos de minha infância familiar. Mas esqueçam desse saboroso pensamento e afastem os sentidos gustativos. Enfim, era amor que não acabava mais.

 Ao trocar olhares, percebemos o quão difícil foi estar longe. Por um momento pensei que nunca mais teríamos problemas, que sempre ficaríamos juntos. Mas, como nos atuais contos de “fada”, a existência do “felizes para sempre” foi questionada e reafirmada negativamente. Não estávamos prontos para ficar juntos mais uma vez. Isto que ele me disse. E completou: “precisamos de um tempo parar refletir sobre os caminhos tomados por nossa história, devemo-nos amar cada vez mais. Só que a situação está difícil para mim. Estou sendo pressionado por todos, por tudo. Tenho medo de que alguma coisa aconteça a você caso fiquemos juntos. O Doutor C e os outros me perseguirão. O horror atrelado à raiva me consome.” A conversa terminou, achei estranha sua posição diante a situação, mas estava demasiada cansada para questionar. Ouvimos algumas músicas que relembravam os velhos tempos, de escola, de criança, de juventude. Então o sono voltou e dormimos entrelaçados em sua cama.
Acordei, dessa vez antes que ele. Tomei um banho, preparei um café e fiquei a sua espera. Como ele não acordava, comecei a observar sua casa, seus móveis, suas coisas. Foi aí que encontrei um bilhete, próximo a uns cadernos em uma mesa de canto. Mais especificamente um recado. Intitulado como: “para um tolo”, era de autoria do Doutor C. Este avisava-lhe do tempo que tinha para se entregar, caso contrário eles já haviam descoberto o local onde morava, pois o tinham visitado na noite passada. Suspirei. Meu espanto foi enorme. O nervosismo acabara de iniciar e percebi o perigo que estávamos correndo. Observando bem, não me lembrava de ter visto o papel naquele local. Concluí que só poderiam ter entrado na casa ontem, depois que dormimos. Lágrimas correram por minha face e tive medo de estar sendo conivente para uma situação como em Hamlet, onde a morte foi a protagonista e, ao mesmo tempo, foi o clímax da situação. Bastou o poeta acordar para descobrir por mim, o que acabara de encontrar.
Não conseguimos ao menos encostar nos lábios a comida. O ódio tornava-se visível. Pegamos algumas coisas, entre roupas e documentos importantes para então, sairmos daquela casa sem o intuito de voltar. Os passos largos e apressados demonstravam a rigidez de nosso amor. Conseguimos, inicialmente, um hotel em uma cidade vizinha, porém afastada da circulação comercial e turística. Instalamos-nos e por horas não trocamos uma sequer palavra sobre o acontecido, ou o que poderia vir a acontecer. Nossos lábios úmidos tocaram-se e, por um segundo, a conexão entre nossas almas era mais forte. Um beijo serviu como encerramento para o dia exaustivo. Durante a noite, sem conseguir dormir, passei meu tempo entretida em um livro que comprara em uma loja local. Falava sobre a vida perigosa de um detetive em busca da solução para os crimes mais ameaçadores. Algo que lembrou-me da situação de outrora. Então adormeci junto às palavras, junto ao poeta.

Um amanhecer se iniciava e uma imensa clareia abriu-se em minha mente. O que seria de nós, nas mãos daqueles doidos que procuravam meu querido poeta? Era uma pergunta que não tinha resposta. Bastou-nos tomar um café e ir atrás de informações. Então ocorreu o que menos esperávamos. Chegando ao antigo saguão do hotel colonial onde havíamos ficado, um tiroteio nos amedrontou. Eram visíveis as balas atravessando vasos, quadro, pessoas e crianças. O medo em nossos olhos e nos olhos de todos era extremamente nítido. Saímos correndo, mas fomos surpreendidos por uma armadilha. Eu acabara de me separar do poeta. Uns sujeitos vestidos de preto levaram-no de mim e eu fora pra longe dele. Outros homens me seguraram. O acetinado de suas roupas mostrava-me a classe com que bolaram a enrascada. Nossas vidas estavam sendo vigiadas há tempos. Eu temia tudo e todos. As cordas passadas em minha volta não me deixavam mexer sequer um músculo, o pano em minha boca amordaçava-me e, ao jogarem-me dentro de um carro, bati a cabeça em uma caixa metálica e reluzente ao meu lado, desmaiando. 

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Nice e a vida - Capítulo II

Relembrando o segundo capítulo completo da história de Nice! Espero que gostem e apreciem!!!

II. O início de um encontro

Eu recentemente havia me mudado para aquela cidade. Depois da morte de meu pai, eu e minha mãe não tivemos outra opção. Ela foi à procura de um emprego e eu de dar continuidade ao último ano de minha formação estudantil antes da faculdade. Foram tempos muito difíceis. Ao encontrar um emprego, minha mãe tornou-se ainda menos presente e eu passava mais tempo na escola, do que em minha própria casa. Era tudo diferente pra mim, novos amigos, nova turma, nova escola. E em meio ao caos só não pude deixar de notar um garoto um tanto quanto diferente. Nunca tinha falado com ele diretamente. Muito menos lembrava-me de seu nome. Aí que mais me culpo.
A cada dia que se passava minha curiosidade em descobrir quem era este garoto só aumentava. Mas evitei me aproximar, não queria que ninguém percebesse, ou que isso, de alguma forma, pudesse afastá-lo. Durante muito tempo o segui. Só que de nada adiantou, ele mudou de escola e temi que a culpa disso fosse minha. Para completar, minha vida já estava muito turbulenta. Com minha mãe doente não havia o que fazer. Foi o mesmo que esperar sentado o recibo de morte confirmada. A doença já estava grave e os recursos para o tratamento eram razoavelmente escassos. Ela morreu. E as lágrimas despejadas serviram simplesmente para confirmar o preço lapidado pela tormenta que resumia a vida dela. Eu estava sozinha novamente, como nos longos períodos em que passava na escola. Sozinha, deveria trilhar meus caminhos em busca de um rumo para minha vida. O turbilhão já havia sumido. E o garoto também.
Passaram-se mais uns cinco anos. Minha vida estava basicamente estável. Nada de mais, nada de menos. Sem excessos ou virtudes. Era um jogo de sobrevivência. Comia para não morrer de fome, estudava para conseguir, talvez, um emprego melhor. Sim, eu trabalhava como balconista em uma livraria. Um sebo na verdade. E ganhava muito pouco.
Na faculdade onde estudava eram poucos os amigos. Na verdade, nenhum. Só os famosos colegas de sala que nada mais fizeram a não ser acompanharem-me no intervalo. E uma série de trabalhos estava por vir. Eu, como sempre, estava só nesta jornada, passando o dia inteiro na biblioteca da faculdade estudando, fazendo e refazendo os trabalhos. Pesquisando e pesquisando mais ainda. E foi em um desses dias, à tarde, que reconheci uma pessoa que nunca tinha visto por lá e por alguns anos não via em lugar algum. Era ele. O garoto. Mas não tive coragem de me aproximar. Na realidade foram dias até que eu me adaptasse a sua presença diária e repentina na biblioteca. Até que ele mesmo lançou-me olhares. Cada dia um mais intrigante. E resolvi me aproximar. Cabelos embaraçados ao vento e com as armas que eu precisava para me afastar rapidamente se for preciso: minhas pernas e minha coragem.
Ele era de uma sensibilidade imensa, a educação e o cuidado como o de quem acaricia as pétalas de uma rosa à espera do orvalho. Seu coração era maior do que o de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Seu aroma era como um mar de lírios onde os mais nobres livros devem repousar. E seu olhar me intimou a uma paixão.
Ele não era tão alto, tinha os cabelos amarelados como o sol amanhecido e escuros como o entardecer. Até o momento só trocávamos olhares. Então resolvi começar a falar. Contei-lhe da escola onde o tinha visto pela primeira vez, do meu curso, de quando o vi novamente, do meu gosto por livros. E não pude deixar de perguntar dele. Sobre o que aconteceu durante nosso “desencontro” imprevisível, sobre os gostos e desgostos, e sobre os projetos de vida. Ele, misteriosamente, respondeu-me que adorava ler e escrever seus poemas, que durante sua saída daquela escola (em que estudamos juntos) ficou escrevendo descontroladamente. E por fim, disse-me que cada passo de seu dia era uma trama de mistérios onde um poeta, às vezes romântico, tinha que preocupar-se com as possibilidades e desafios encontrados. E que não seria difícil dialogar com uma pessoa tão exploradora de livros como ele. Era a mim que ele se referia. Ele saiu. Eu saí. E naquela biblioteca, os livros eram cúmplices de um dos momentos mais importantes de minha vida. O momento do reencontro com meu passado, com o garoto que por tanto tempo me intrigou. Cada página, cada letra, ouvia a suave voz do poeta e da dama. Uma história acabava de começar e o “Era uma vez...” provinha dos saberes entrelaçados em cada livro ali presente. A luz apagou-se, e na penumbra, a cadeira onde ele havida sentado ficou a espera de um novo amanhecer, onde novas conversas tão enigmáticas e apaixonantes seriam tecidas e contracenadas por tão bons atores como nós mesmo fomos.
Por mais de um mês ficamos a nos encontrar no mesmo local. Para conversar. Somente. E ouvir de sua adocicada voz, resquícios dos poemas mais atingíveis que já ouvi. Pelo menos para mim. Todos, sem exceção. Durante muito tempo, muitos dias e semanas. Minha vida realmente teria mudado. Eu estava apaixonada. Por ele. Pelo poeta. E cada vez mais feliz por isso.
Havia dias em que ele me levava rosas. Das mais perfumadas e acaloradas que eu já tinha visto. O aroma conseguia ser tão presente quanto o dele. O carinho em suas atitudes, em sua voz, sensibilizava-me. Clareava meus caminhos. Exalava fragrâncias em minha vida. As longas conversas estavam longe, mas muito longe, da monotonia de outros tempos. Eu era uma nova moça, uma moça-mulher. E como, cada vez mais, ele me encantava eu não sabia. Era amor na certa. Ou dó de um pobre poeta desalmado. Cujos poemas não serviriam para nada além de alimentar-me as lágrimas suavizadas pelas olheiras das noites mal dormidas. As noites em que pensei nele e em sua poesia.
O mundo mudara para mim. De uns tempos pra cá a vida era a semelhança de uma certeza que eu ainda deveria confirmar. E todos os acontecimentos serviam de afirmação para cada declaração milimetricamente misteriosa. Nosso envolvimento, ao passar dos dias, era firmado por mais um cadeado que nos unia. Eu acabara de conhecer a paixão. Que segundo ele é a “cápsula envolvente de um amor platônico e idealizado como os românticos o fizeram”.
As semanas corriam e já se passara mais de três meses. Percebi uma repentina mudança em seu comportamento. O medo em seu olhar era cada vez mais presente. Seus poemas tornavam-se menos “entrelaçantes”. Seu sorriso desatava a cada pessoa que passava despercebida, o que nunca antes acontecera. As conversas ficaram mais rápidas e sucintas. O amor era derretido e a cada instante uma nova gota desperdiçada se perdia no mar de lágrimas provenientes de mim. Todas as noites mal dormidas foram transformadas em noites de tormenta e choro, muita lágrima derramada. Muita falta de pensamento. Eu não sabia o que acontecera. A situação, a cada momento, ficava mais fora de alcance.
Foi quando, em um dia, antes de chegar à biblioteca, nosso local de encontro fora substituído por um corredor. Aquele corredor. Onde ele singelamente me disse que precisava retomar as escritas, que eu sabia por que ele estava ali. Mas eu não sabia. Não tinha a mínima ideia. E ainda afirmou que achavam que o estavam perseguindo e procurando, e não devia deixar as escritas e reflexões em perigo. Eu via o medo em seus olhos. Mas não tive alternativas quando ele me fez prometer que não seguiria seu caminho e nem iria procurá-lo mais.
Foi intrigante e misterioso. Ele me deixou só. Num corredor escuro e sem saber o que fazer. Sem rumo. Ele tornava-se, a cada instante, mais inatingível. Era um poeta, mas um poeta inatingível.
E então fui à sua procura, contrariando a promessa, como já lhes contei. E o encontrei em sua casa diante a rala chuva que escorria em minha face, desviando em meus lábios e inundando meu corpo. Finalmente após dois anos pude reencontrá-lo. Mas nem tudo estava como pensei.

O mundo havia mudado, assim como ele, suas atitudes, seu endereço (que na cadeira da biblioteca me confessara e me custou descobrir o novo, mas o havia feito) sua vida, a minha vida e o seu amor. Era difícil e doloroso vê-lo assim. Mas já era hora de conhecer as “cartas” deste “baralho”. E como num jogo de xadrez, dei-lhe o “xeque-mate”.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Chá de livro #1

    Um projeto que criei a uns três anos em que escrevo cartas para personagens de clássicos da literatura. O primeiro escolhido por ordem de publicação do mesmo é o "Auto da Barca do Inferno" de Gil Vicente. As cartas inicias são escritas em segunda pessoa, depois serão escritas em primeira pessoa. A ideia é aproximar você, leitor, de detalhes importantes da obra à partir  de críticas ao "entrelaçar" da trama. Espero que viaje comigo nessa leitura!

Auto da Barca do Inferno (1517), Gil Vicente

            É meu querido Anjo, pelo que vejo tu és o mais direto e objetivo. Teve gente que te confundiu com o Diabo e ele contigo. Aliás, não é de se achar normal um símbolo como tu teres caráter tão maldoso e o Diabo já tão acolhedor. Larga este maniqueísmo! Tua barca está cheia quando, somente, os cristãos entram, mas a infernal transborda de malfeitores e pecadores como bem nos disse. Só que agora quero compreender porque alguns tu expulsaste.
            O Fidalgo, coitado, era nobre. Tentou fugir do diabo, mas foi na barca dele que entrou. Claro que entendo o porquê de lá estar. Nem pra admitir os pecados ele prestou, quanto menos para perceber que sua mulher ficou feliz com sua morte. E quanto ao pajem, foi ignorado por ti e pelo Diabo. Nem sequer, em uma barca, entrou. E fique no Inferno que concordo deste ponto.
            O Onzeneiro era um agiota qualquer. Não fez nada que preste. E foi para o inferno como eu bem presumia. Nem perdemos tempo com ele. Só de conhecer o tal Fidalgo nem precisamos gastar mais argumento. Vai pra outra barca.
            O Parvo. Ele sim tem um “quê” de zombaria. Um tolo, ingênuo, que não faz por mal. Claro que tu, Anjo, entendeste. Este o Diabo não menospreza, mas como tu liberaste, aí entrou. E foi bem feito.
            O Sapateiro. Não tão importante. Se roubou, para o inferno irá. Sem desculpas. E concordo contigo também.
            O frade. Que chega com sua amante e ainda acha que passaria para tua barca. Só por ser religioso o castigo deveria ser maior. Onde já se viu um padre ter amante, é um falso moralismo religioso. Ele que não venha com conversa afiada. Ainda bem que para o céu não foi. Nem a amante.
            Brísida Vaz, a alcoviteira. Ela que a seiscentos homens enganou com as falsas moças virgens. E há quem diga que a própria Brísida foi quem as tais virgindades retirou. Nem adiantou ajoelhar que tu já mandaste à barca infernal. E foi o certo.
            O Judeu e seu bode. Achas certo, Anjo, todo este preconceito? Foi ignorado pelo Diabo ao pedir para entrar na barca dos infernos. Apelou para o suborno e foi uma tentativa falha. E tu também o rejeitou pela não aceitação do cristianismo. E o coitado acabou rebocado pelo Diabo. Tudo isto, pois seu querido Dom Manuel resolveu expulsar vários judeus de Portugal. E os que sobram viram “cristãos novos”. É difícil acreditar que tanto o Diabo como tu tens toda esta afeição pelo cristianismo. Deveriam, vocês, serem imparciais. Mas não vou discutir, deixemos isto ao final.
            O Corregedor e o Procurador são do judiciário. Com seus processos e livros tentam se defender como belos advogados que não são. Ninguém mandou manipular a justiça, que vão para o inferno.
            O enforcado, nem preciso dizer. Um corrupto safado. E se foi condenado ao enforcamento, é porque de algum modo errou perante todos e à Igreja. Que no inferno fique até ser enforcado novamente. Se é que pode!
            Só o Parvo e os Cavaleiros para se salvarem, estes por lutarem nas cruzadas e aquele já “vos disse”. Vejo a revolta de todos que lá estavam, na barca encalhada dos infernos, e que tiveram que empurrá-la. Fico intrigado com tua afeição pelos cristãos. Os Cavaleiros mataram, mas como foi pela igreja tudo bem. Tudo bem pra ti. Eu, que de certo nada achei, me pergunto a importância da Igreja pra ti, Anjo. Neste purgatório, deveria tu ser imparcial e não ficar relatando se foi ou não em prol da Igreja cristã que as coisas aconteceram.
            Nesta Idade Média em que tu prevaleceste, poucos se salvaram. E destes poucos, só os influenciados pelo cristianismo ou os puros. As normas religiosas não foram cumpridas da forma mais restrita, e nem mesmo os salvos o fizeram por bem. Mas sobre bem e mau não discuto. Que fique congelado neste maniqueísmo vicioso. Que a transição e oposição entre vida e morte, bem e mau, fique intacta no purgatório, onde tu e o Diabo que entrem em acordo para lotar as barcas.
            Entendo tua dúvida entre a religiosidade medieval e a crítica social moderna, mas me pergunto se de lá pra cá alguém já teria coragem e responsabilidade para interpretar, neste teatro “medieval-moderno”, opiniões tão distintas, entre certo e errado, e tão próximas, entre o cristianismo do céu e do inferno, do Diabo e de tu, querido Anjo.

            Espero que te decida então. E enquanto isto leio sobre a Alma e o Purgatório.

domingo, 31 de agosto de 2014

Um retorno. Uma história. A mesma Nice.

    Caros leitores!
    Desculpem-me pelo enorme tempo ausente. Compromisso estudantis, projetos e a escrita de Nice e a Vida tomaram meus dias e noites, o que tornou impossível compartilhar com vocês nesse período. Mas como forma de recuperar os dias perdidos, adianto aqui que a vida de Nice está quase ultrapassando a marca de 40 páginas. E para compensar, a partir de hoje estarei postando no blog os capítulo novamente, o que me proporciona uma margem de texto suficiente para que eu poste e escreva simultaneamente essa história mágica, cheia de suspense e romance em cada frase. Espero que gostem!!!

Abaixo o primeiro capítulo completo de Nice e a Vida:

I. À procura dele

            E pensar que correr por aquele corredor poderia ter mudado minha vida. Não. Já foi. Já passou. E o que sinto, não faz mais diferença agora. Ele saiu, me deixou e só resta recolher-me os cacos e fugir.
            Assim me senti no primeiro dia. Quando nos aproximamos, não sabia mais como construir meu mundo, se recolhia os cacos, ou reconstruía com novos materiais. Essa foi a dúvida.
            Então, saí correndo e cá estou, neste beco (se é que posso chamar quarto de beco, afinal é onde me recolho nas fraquezas e virtudes) sozinha. Não sei o porquê? Nem como isto aconteceu. Mas vou começar do próprio começo. Se é que me permitem tal falta de comprometimento com ela, a culta norma.

            Aos poucos me preparava para o momento. O momento certo daquilo.
Passei pela casa dele logo de manhã, junto à translúcida chuva matutina. Onde cada pequena gota escorregava pelo ar não tão poluído, como o diamante a escorrer do olhar. A meu ver, a casa estava escurecida, a treva haveria passado por ali também, como em toda casa onde se deixa sonhar livremente e pelo tempo que for preciso. Não percebi que dali olhavam-me. E nem como isto mexeu com minha vida, quebrando o cristal mais precioso, a coragem, e deixando-me na dúvida. De ir ou não ir, voltar ou não voltar. Ou como diz Hamlet: “Ser ou não ser”. Tal dúvida não me deixava consolar aos pensamentos.
Andando um pouco mais, passei pela biblioteca que durante muito tempo frequentei. Antes de conhecê-lo. Lá, os livros eram como as âncoras dos navios, impedindo-me de sair sem terminá-los, de sair ao caos e afogar-me nas grotescas ondas de um mar profundo. E foi o que fiz. Afoguei-me. Mas, nos livros. O cheiro da página virada dava-me fome, fome de lê-lo e relê-lo e relê-lo. Lá, cada estrofe era uma vida que se renovava, uma parte da história que se acoplava em meu mundo, junto às ideias mirabolantes de ser uma leitora, escritora e amante fiel da palavra escrita. Corri.
Por um instante pensei ter feito a coisa certa, mas de certo só o errado acerto. A chuva continuava e meu cabelo, já ensopado, não tinha mais forma. Continuei caminhando para então, parar e lembrar-me de mais uma das entranhas da minha vida cruel. Lembrei-me dos tempos em que estudei naquela escola a minha frente. Das brincadeiras escassas de maldade, cheias de prazer, dos amigos, professores, dos cantos e recantos, dos momentos lá vividos e de cada peça do meu quebra-cabeça vital lá reconstruído. O portão lembrava-me dos sonhos que tive e ficaram guardados atrás de cada parede suja com os riscos de giz, os riscos da infância, vigiados pelo cadeado que o trancava.

Mas me deixem chorar. Lembranças fazem-me escorrer lágrimas.

E continuei a correr na chuva, desesperada por cada gota que esfriava meu corpo quente de saudade. Se é que choveu, pois corri boa parte do percurso desperdiçando lágrimas. Inesgotável. A cada passo, as lembranças dos nossos momentos juntos não me saíam da cabeça. Eu me arrependia cada vez mais de ter corrido quando passava em frente a sua casa. Mas como falei, foi minha já esgotada coragem, que sumiu sem deixar rastros. Continuei andando até encontrar uns amigos e assim, me recompor.
Passaram-se horas e eu, com eles, esqueci-me dele. Momentaneamente.
Sim, era outro dia e eu acabava de acordar em meu famoso quartel. Meu quarto querido. Sem me esquecer dele. E morrendo de vontade de encontrá-lo. Fui.
Por sorte, estava na casa. Na mesma onde me olhavam ontem. E era ele que me olhou fixamente. Só que o nervosismo não me tinha deixado perceber.

Como pude esquecer de meu querido Poeta tão amado? E pensar que ele me deixou só, naquele corredor, dizendo: “Preciso retomar minhas escritas alucinadas, afinal, você sabe por que estou aqui. Seguirei meu caminho e você prometerá não ir atrás de mim. Tenho a leve impressão de que me perseguem e me procuram, estou com medo e não devo deixar minhas escritas, minhas reflexões de um poeta mal amado, correndo perigo. Não me siga ou me espere nunca mais.”. Correr atrás dele poderia ter mudado minha vida. Mas não o fiz. Havia prometido. Recolhi-me os cacos, como já lhes disse, e fugi. Se é que posso fugir, afinal já estava sozinha e nada e ninguém me perseguiam. Imagino.
Sei como tudo deve estar confuso para você. Por isso, falarei sobre mim e sobre ele, o Poeta inatingível.