Chegamos ao terceiro capítulo completo da história. E aí? Está gostando? Pois logo teremos mais!!!
III. Conversa pouco menos que dolorosa
Poucos segundos após minha chegada em sua
casa, voltei a ficar imóvel. A chuva que escorria pelas sinuosidades de meu
corpo fazia-me tremer de frio. Eu continuava sem coragem de bater na porta, por
mais sutil que fosse. Gradualmente os pingos foram aumentando, assim como os
calafrios pelo corpo. Minha imobilidade já durava alguns minutos quando ele
percebeu que havia alguém em frente à porta. Imaginei que minha sombra pudesse
tê-lo assustado, mas logo concluí que não. Ele jamais se assustaria com essas
coisas. Então abriu a porta e eu entrei, muda, molhada e espantada com a
situação que acabara de encontrar.
Sem uma única pergunta, fui conduzida até a
sala, ao lado esquerdo de um sofá, iluminada por resquícios de luz provenientes
de um abajur. Na penumbra, só era possível observar a silhueta de seu corpo
posicionado ao lado do meu, mesmo que ainda estivesse um pouco afastado. Foi
preciso mais alguns minutos para se iniciar o diálogo.
Percebi sua hesitação em me perguntar como o
encontrara. E para iniciar a própria conversa. Mas, aos poucos, a troca de
palavras tornou-se fluente. Quis saber o porquê de ele ter sumido tão de
repentinamente. O que me foi respondido ricocheteou em minha mente. Disse-me: “Era
preciso fugir. Naquele momento me senti perseguido. Você sabia muito bem o
motivo para me encontrar ali, o motivo pelo qual eu gosto tanto da escrita e,
naquele dia, não me atrevera a escrever uma só palavra. Você sabia de tudo.
Tinha conhecimento do contrato de escrita que fiz. Eu não tinha alternativa, a
não ser fugir deles e me afastar de você. Para protegê-la e nada mais.”.
Achei muito estranho o fato dele ter dito que
eu sabia o motivo de sua “fuga”. A única coisa de que me lembrava era de um tal
Doutor C, com que fechara um contrato de escrita. Mas nem sabia o que era e nem
como era este contrato, ele não me tinha dito.
Pedi uma melhor explicação e ele respondeu:
“Chega um certo momento em que é preciso entregar as cartas e esclarecê-las.
Este momento é agora. Aquele contrato de escrita de que lhe falei foi um
acordo, com o Doutor C. Ele descobriu uma coisa, sobre minhas escritas, o modo
como escrevo e fortaleço as palavras. Mas isto, não posso lhe detalhar agora.
Com este contrato, o doutor me obrigaria a servi-lo, a obedecer seus comandos
de escrita, caso contrário eu seria desmascarado. Eu estava vulnerável e só o
assinei para ganhar um tempo para fugir. Então lhe encontrei naquele corredor,
no momento de minha fuga. Era preciso fugir dele e dos seu aliados que a muito
tempo perseguiram-me. Quando lhe disse sobre isso, eu tinha certeza do perigo
dessa busca incansável por mim, mas não poderia deixar isso claro a você. E
fugi”.
Foi estranho ouvi-lo. As palavras saíam de
sua boca como farpas a atravessar meu coração. Ele não confiou em mim naquele
dia. E isto me soou estranho. Lembro-me muito bem de suas palavras: “... não me
siga nem espere nunca mais.” As duas últimas me deixaram pensativa. Como
poderia ser fácil esquecê-lo depois de tanta conversa, tantos olhares? Não era
possível. Não para mim. Demorei um bom tempo para me recompor e tentar
continuar vivendo até encontrá-lo novamente. O que ainda me intrigava era o
fato dele manter segredo quanto ao contrato com o Doutor C e o segredo atrelado
a sua vida. Eu não conseguia mais ficar imóvel com tal situação. Segurei-o pelo
braço e pedi para que olhasse para mim. Ficamos “cara a cara”, fitamo-nos, e
reconheci em seu olhar o desespero de muita mentira e segredo fundidos ao fato
de termos ficado longe. Larguei-o e fui ao parapeito da janela para conferir se
a penumbra de uma manhã chuvosa era responsável pelo que acontecera instantes
antes. Ele abraçou-me por trás e fez com que caíssemos no sofá, juntos,
imóveis, intactos. Seu perfume servia-me de consolo por tanto tempo perdido. A
essência de nossas almas era de uma simplicidade efêmera, porém real e valiosa.
Nossos rostos, gélidos e pálidos, se encontraram. Era possível sentir o calor
de suas aventuras e do meu amor. Um beijo foi o responsável por selar nosso
encontro. Diante da chuva, dormimos naquele fim de manhã. A conversa de outrora
já nos tinha cansado demais. Deixamos a preocupação de lado e dormimos.
Senti-me muito estranha ao acordar. Estava em
outro lugar. Não sabia onde. Mas fui surpreendida quando ele entrou no quarto
segurando uma rosa e beijando-me para que acordasse. Fui presenteada. Acabava
de se passar o fim da tarde e iniciava-se a noite. Enquanto meu amado poeta
entregava-me a flor, percebi que estava no quarto de sua casa. De lá, voltamos
à sala e debatemos sobre a vida, nossas vidas, o que acontecera nesses anos.
Andei até o banheiro, preparando-me para um banho e ele, carinhosamente, foi
preparar-nos um jantar.
Voltei para a sala e observei as velas em
cima da mesa, a essência de primavera e seu corpo, sentado a minha espera.
Aproximei-me da cadeira onde sentei e, junto a ele, comi. Era um delicioso filé
mignon com batatas levemente rosadas e outros legumes junto a um molho de
cogumelos que sempre revelei gostar.
Ah!
E como esse aromático molho me fazia bem! Ele representava as ceias natalinas,
os almoços calorosos e todos os outros momentos de minha infância familiar. Mas
esqueçam desse saboroso pensamento e afastem os sentidos gustativos. Enfim, era
amor que não acabava mais.
Ao trocar
olhares, percebemos o quão difícil foi estar longe. Por um momento pensei que
nunca mais teríamos problemas, que sempre ficaríamos juntos. Mas, como nos
atuais contos de “fada”, a existência do “felizes para sempre” foi questionada
e reafirmada negativamente. Não estávamos prontos para ficar juntos mais uma
vez. Isto que ele me disse. E completou: “precisamos de um tempo parar refletir
sobre os caminhos tomados por nossa história, devemo-nos amar cada vez mais. Só
que a situação está difícil para mim. Estou sendo pressionado por todos, por
tudo. Tenho medo de que alguma coisa aconteça a você caso fiquemos juntos. O
Doutor C e os outros me perseguirão. O horror atrelado à raiva me consome.” A
conversa terminou, achei estranha sua posição diante a situação, mas estava
demasiada cansada para questionar. Ouvimos algumas músicas que relembravam os
velhos tempos, de escola, de criança, de juventude. Então o sono voltou e
dormimos entrelaçados em sua cama.
Acordei, dessa vez antes que ele. Tomei um
banho, preparei um café e fiquei a sua espera. Como ele não acordava, comecei a
observar sua casa, seus móveis, suas coisas. Foi aí que encontrei um bilhete,
próximo a uns cadernos em uma mesa de canto. Mais especificamente um recado.
Intitulado como: “para um tolo”, era de autoria do Doutor C. Este avisava-lhe
do tempo que tinha para se entregar, caso contrário eles já haviam descoberto o
local onde morava, pois o tinham visitado na noite passada. Suspirei. Meu
espanto foi enorme. O nervosismo acabara de iniciar e percebi o perigo que
estávamos correndo. Observando bem, não me lembrava de ter visto o papel
naquele local. Concluí que só poderiam ter entrado na casa ontem, depois que
dormimos. Lágrimas correram por minha face e tive medo de estar sendo conivente
para uma situação como em Hamlet, onde a morte foi a protagonista e, ao mesmo
tempo, foi o clímax da situação. Bastou o poeta acordar para descobrir por mim,
o que acabara de encontrar.
Não conseguimos ao menos encostar nos lábios
a comida. O ódio tornava-se visível. Pegamos algumas coisas, entre roupas e
documentos importantes para então, sairmos daquela casa sem o intuito de
voltar. Os passos largos e apressados demonstravam a rigidez de nosso amor.
Conseguimos, inicialmente, um hotel em uma cidade vizinha, porém afastada da
circulação comercial e turística. Instalamos-nos e por horas não trocamos uma
sequer palavra sobre o acontecido, ou o que poderia vir a acontecer. Nossos
lábios úmidos tocaram-se e, por um segundo, a conexão entre nossas almas era
mais forte. Um beijo serviu como encerramento para o dia exaustivo. Durante a
noite, sem conseguir dormir, passei meu tempo entretida em um livro que
comprara em uma loja local. Falava sobre a vida perigosa de um detetive em
busca da solução para os crimes mais ameaçadores. Algo que lembrou-me da
situação de outrora. Então adormeci junto às palavras, junto ao poeta.
Um amanhecer se iniciava e uma imensa clareia
abriu-se em minha mente. O que seria de nós, nas mãos daqueles doidos que
procuravam meu querido poeta? Era uma pergunta que não tinha resposta.
Bastou-nos tomar um café e ir atrás de informações. Então ocorreu o que menos
esperávamos. Chegando ao antigo saguão do hotel colonial onde havíamos ficado,
um tiroteio nos amedrontou. Eram visíveis as balas atravessando vasos, quadro,
pessoas e crianças. O medo em nossos olhos e nos olhos de todos era
extremamente nítido. Saímos correndo, mas fomos surpreendidos por uma
armadilha. Eu acabara de me separar do poeta. Uns sujeitos vestidos de preto
levaram-no de mim e eu fora pra longe dele. Outros homens me seguraram. O
acetinado de suas roupas mostrava-me a classe com que bolaram a enrascada.
Nossas vidas estavam sendo vigiadas há tempos. Eu temia tudo e todos. As cordas
passadas em minha volta não me deixavam mexer sequer um músculo, o pano em
minha boca amordaçava-me e, ao jogarem-me dentro de um carro, bati a cabeça em
uma caixa metálica e reluzente ao meu lado, desmaiando.