segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Chá de livro #1

    Um projeto que criei a uns três anos em que escrevo cartas para personagens de clássicos da literatura. O primeiro escolhido por ordem de publicação do mesmo é o "Auto da Barca do Inferno" de Gil Vicente. As cartas inicias são escritas em segunda pessoa, depois serão escritas em primeira pessoa. A ideia é aproximar você, leitor, de detalhes importantes da obra à partir  de críticas ao "entrelaçar" da trama. Espero que viaje comigo nessa leitura!

Auto da Barca do Inferno (1517), Gil Vicente

            É meu querido Anjo, pelo que vejo tu és o mais direto e objetivo. Teve gente que te confundiu com o Diabo e ele contigo. Aliás, não é de se achar normal um símbolo como tu teres caráter tão maldoso e o Diabo já tão acolhedor. Larga este maniqueísmo! Tua barca está cheia quando, somente, os cristãos entram, mas a infernal transborda de malfeitores e pecadores como bem nos disse. Só que agora quero compreender porque alguns tu expulsaste.
            O Fidalgo, coitado, era nobre. Tentou fugir do diabo, mas foi na barca dele que entrou. Claro que entendo o porquê de lá estar. Nem pra admitir os pecados ele prestou, quanto menos para perceber que sua mulher ficou feliz com sua morte. E quanto ao pajem, foi ignorado por ti e pelo Diabo. Nem sequer, em uma barca, entrou. E fique no Inferno que concordo deste ponto.
            O Onzeneiro era um agiota qualquer. Não fez nada que preste. E foi para o inferno como eu bem presumia. Nem perdemos tempo com ele. Só de conhecer o tal Fidalgo nem precisamos gastar mais argumento. Vai pra outra barca.
            O Parvo. Ele sim tem um “quê” de zombaria. Um tolo, ingênuo, que não faz por mal. Claro que tu, Anjo, entendeste. Este o Diabo não menospreza, mas como tu liberaste, aí entrou. E foi bem feito.
            O Sapateiro. Não tão importante. Se roubou, para o inferno irá. Sem desculpas. E concordo contigo também.
            O frade. Que chega com sua amante e ainda acha que passaria para tua barca. Só por ser religioso o castigo deveria ser maior. Onde já se viu um padre ter amante, é um falso moralismo religioso. Ele que não venha com conversa afiada. Ainda bem que para o céu não foi. Nem a amante.
            Brísida Vaz, a alcoviteira. Ela que a seiscentos homens enganou com as falsas moças virgens. E há quem diga que a própria Brísida foi quem as tais virgindades retirou. Nem adiantou ajoelhar que tu já mandaste à barca infernal. E foi o certo.
            O Judeu e seu bode. Achas certo, Anjo, todo este preconceito? Foi ignorado pelo Diabo ao pedir para entrar na barca dos infernos. Apelou para o suborno e foi uma tentativa falha. E tu também o rejeitou pela não aceitação do cristianismo. E o coitado acabou rebocado pelo Diabo. Tudo isto, pois seu querido Dom Manuel resolveu expulsar vários judeus de Portugal. E os que sobram viram “cristãos novos”. É difícil acreditar que tanto o Diabo como tu tens toda esta afeição pelo cristianismo. Deveriam, vocês, serem imparciais. Mas não vou discutir, deixemos isto ao final.
            O Corregedor e o Procurador são do judiciário. Com seus processos e livros tentam se defender como belos advogados que não são. Ninguém mandou manipular a justiça, que vão para o inferno.
            O enforcado, nem preciso dizer. Um corrupto safado. E se foi condenado ao enforcamento, é porque de algum modo errou perante todos e à Igreja. Que no inferno fique até ser enforcado novamente. Se é que pode!
            Só o Parvo e os Cavaleiros para se salvarem, estes por lutarem nas cruzadas e aquele já “vos disse”. Vejo a revolta de todos que lá estavam, na barca encalhada dos infernos, e que tiveram que empurrá-la. Fico intrigado com tua afeição pelos cristãos. Os Cavaleiros mataram, mas como foi pela igreja tudo bem. Tudo bem pra ti. Eu, que de certo nada achei, me pergunto a importância da Igreja pra ti, Anjo. Neste purgatório, deveria tu ser imparcial e não ficar relatando se foi ou não em prol da Igreja cristã que as coisas aconteceram.
            Nesta Idade Média em que tu prevaleceste, poucos se salvaram. E destes poucos, só os influenciados pelo cristianismo ou os puros. As normas religiosas não foram cumpridas da forma mais restrita, e nem mesmo os salvos o fizeram por bem. Mas sobre bem e mau não discuto. Que fique congelado neste maniqueísmo vicioso. Que a transição e oposição entre vida e morte, bem e mau, fique intacta no purgatório, onde tu e o Diabo que entrem em acordo para lotar as barcas.
            Entendo tua dúvida entre a religiosidade medieval e a crítica social moderna, mas me pergunto se de lá pra cá alguém já teria coragem e responsabilidade para interpretar, neste teatro “medieval-moderno”, opiniões tão distintas, entre certo e errado, e tão próximas, entre o cristianismo do céu e do inferno, do Diabo e de tu, querido Anjo.

            Espero que te decida então. E enquanto isto leio sobre a Alma e o Purgatório.

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