Auto
da Barca do Inferno (1517), Gil Vicente
É meu querido Anjo,
pelo que vejo tu és o mais direto e objetivo. Teve gente que te confundiu com o
Diabo e ele contigo. Aliás, não é de se achar normal um símbolo como tu teres
caráter tão maldoso e o Diabo já tão acolhedor. Larga este maniqueísmo! Tua
barca está cheia quando, somente, os cristãos entram, mas a infernal transborda
de malfeitores e pecadores como bem nos disse. Só que agora quero compreender
porque alguns tu expulsaste.
O Fidalgo, coitado, era nobre. Tentou fugir do diabo, mas
foi na barca dele que entrou. Claro que entendo o porquê de lá estar. Nem pra
admitir os pecados ele prestou, quanto menos para perceber que sua mulher ficou
feliz com sua morte. E quanto ao pajem, foi ignorado por ti e pelo Diabo. Nem
sequer, em uma barca, entrou. E fique no Inferno que concordo deste ponto.
O Onzeneiro era um agiota qualquer. Não fez nada que
preste. E foi para o inferno como eu bem presumia. Nem perdemos tempo com ele.
Só de conhecer o tal Fidalgo nem precisamos gastar mais argumento. Vai pra
outra barca.
O Parvo. Ele sim tem um “quê” de zombaria. Um tolo,
ingênuo, que não faz por mal. Claro que tu, Anjo, entendeste. Este o Diabo não
menospreza, mas como tu liberaste, aí entrou. E foi bem feito.
O Sapateiro. Não tão importante. Se roubou, para o
inferno irá. Sem desculpas. E concordo contigo também.
O frade. Que chega com sua amante e ainda acha que
passaria para tua barca. Só por ser religioso o castigo deveria ser maior. Onde
já se viu um padre ter amante, é um falso moralismo religioso. Ele que não
venha com conversa afiada. Ainda bem que para o céu não foi. Nem a amante.
Brísida Vaz, a alcoviteira. Ela que a seiscentos homens
enganou com as falsas moças virgens. E há quem diga que a própria Brísida foi
quem as tais virgindades retirou. Nem adiantou ajoelhar que tu já mandaste à
barca infernal. E foi o certo.
O Judeu e seu bode. Achas certo, Anjo, todo este
preconceito? Foi ignorado pelo Diabo ao pedir para entrar na barca dos
infernos. Apelou para o suborno e foi uma tentativa falha. E tu também o
rejeitou pela não aceitação do cristianismo. E o coitado acabou rebocado pelo
Diabo. Tudo isto, pois seu querido Dom Manuel resolveu expulsar vários judeus
de Portugal. E os que sobram viram “cristãos novos”. É difícil acreditar que
tanto o Diabo como tu tens toda esta afeição pelo cristianismo. Deveriam,
vocês, serem imparciais. Mas não vou discutir, deixemos isto ao final.
O Corregedor e o Procurador são do judiciário. Com seus
processos e livros tentam se defender como belos advogados que não são. Ninguém
mandou manipular a justiça, que vão para o inferno.
O enforcado, nem preciso dizer. Um corrupto safado. E se
foi condenado ao enforcamento, é porque de algum modo errou perante todos e à
Igreja. Que no inferno fique até ser enforcado novamente. Se é que pode!
Só o Parvo e os Cavaleiros para se salvarem, estes por
lutarem nas cruzadas e aquele já “vos disse”. Vejo a revolta de todos que lá
estavam, na barca encalhada dos infernos, e que tiveram que empurrá-la. Fico
intrigado com tua afeição pelos cristãos. Os Cavaleiros mataram, mas como foi
pela igreja tudo bem. Tudo bem pra ti. Eu, que de certo nada achei, me pergunto
a importância da Igreja pra ti, Anjo. Neste purgatório, deveria tu ser
imparcial e não ficar relatando se foi ou não em prol da Igreja cristã que as
coisas aconteceram.
Nesta Idade Média em que tu prevaleceste, poucos se salvaram.
E destes poucos, só os influenciados pelo cristianismo ou os puros. As normas
religiosas não foram cumpridas da forma mais restrita, e nem mesmo os salvos o
fizeram por bem. Mas sobre bem e mau não discuto. Que fique congelado neste
maniqueísmo vicioso. Que a transição e oposição entre vida e morte, bem e mau,
fique intacta no purgatório, onde tu e o Diabo que entrem em acordo para lotar
as barcas.
Entendo tua dúvida entre a religiosidade medieval e a
crítica social moderna, mas me pergunto se de lá pra cá alguém já teria coragem
e responsabilidade para interpretar, neste teatro “medieval-moderno”, opiniões
tão distintas, entre certo e errado, e tão próximas, entre o cristianismo do
céu e do inferno, do Diabo e de tu, querido Anjo.
Espero que te decida então. E enquanto isto leio sobre a
Alma e o Purgatório.
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