domingo, 7 de abril de 2013

O sangue feminino ainda injustiçado


Essa narrativa minha participou do 8o Prêmio Igualdade de Gênero. Na temática estavam as relações de gênero entre homens e mulheres tão polêmicas atualmente. Espero que gostem e apreciem esse forte e marcante texto, em busca da valorização feminina e término do preconceito ainda vigente. 

O sangue feminino ainda injustiçado

Percebi o tiroteio quando a primeira bala acertou a janela do meu quarto. Foi o tempo de saltar da cama e me esconder atrás de uma parede falsa dentro do meu guarda-roupa. A previsão de muitas vezes acabara de se tornar realidade. Senti-me segura somente quando agarrei meu caderno, já amarelado, e um pedaço de lápis com o qual comecei a escrever e reviver momentos dramáticos de minha vida.
A primeira coisa que me veio a mente foi minha mãe. Lembrava-me do rosto cansado, das tantas lágrimas derramadas, de toda violência sofrida. Dos espancamentos que sofrera, das constantes humilhações por ser pobre e negra no Brasil.  O contínuo barulho dos tiros fazia-me lembrar do sofrimento que a corroeu por muitos anos, assim como as desigualdades e agressões. Minha infância foi difícil. Em pleno auge da Segunda Guerra Mundial, eu ficava horrorizada com as notícias que ouvia, das pessoas sofrendo, morrendo. Só podia imaginar o sangue escorrendo nos bueiros, como a chuva tranquila e refrescante que aterrorizava os moradores de rua no mundo inteiro. Os corpos estirados no chão, os pedaços de seres humanos em cada esquina, era difícil imaginar como meu pai reagia a tudo isto, enquanto participava dos conflitos. Enquanto atacava a Itália, que muito me custou descobrir o que era, pois eu não estudara, não havia professor disposto a isto, todos ficavam com medo de sair às ruas, de ensinar pobres coitados, sem dinheiro algum. A situação só piorava, mas para quem já estava esperando pelo pior, não fazia diferença. Era triste lembrar que, depois da morte de meu pai na guerra, fomos expulsas do cubículo onde morávamos e passamos dias mendigando, em busca do alimento de cada dia e de um trabalho para uma pobre mulher, minha mãe. Sentia-me horrível em vê-la sendo maltratada pelos homens que passavam pelas ruas. A cada chute que levava, uma nova lágrima escorria pela minha face em busca de um refúgio, com medo de tanta maldade. Não existiam direitos para as mulheres, não havia justiça nas ruas, onde o sol nascia cada vez mais próximo. O calor aderiu à pele já suada, a refletir com um espelho d’água sob o sol cotidiano. Os dias passavam e a cada minuto ficava mais difícil, para minha mãe, conseguir um emprego. Até que um homem qualquer ofereceu o cargo de carregadora de encomendas na quitanda da qual era dono. Garanto que foi por pena, por todo o tempo que nos enxotou da frente de seu comércio de onde relutávamos em sair. O fato é que com este emprego era possível comprar umas torradas de pão velho, sobrando algumas moedas para o jornal, material indispensável em nosso dia-a-dia. E nos aquecia ao anoitecer.
Nossa vida mudara. De pedintes, fomos promovidas a “escravas”, com minha mãe recebendo aquela miséria. Para nós não existia nação, fé ou mesmo patriotismo. Existia a mulher sendo inferior, como se ainda comesse, dia e noite, a maçã, já globalizada, de Eva. E para piorar nossa situação e resolver suas dívidas sujas, o quitandeiro obrigou o casamento com minha mãe. Não que isso fosse sinônimo de liberdade, pois a mesma estava tão distante. Nem que ela tivesse outra opção a escolher. A rotina da coitada não mudara, apenas ganhara o título de “mulher do quitandeiro”. Novidade foram os pontapés, socos e tapas recebidos do homem que se dizia marido. Se uma laranja caísse de uma encomenda e porventura estragasse, a violência começava. Cada vez pior. As marcas e os hematomas só eram percebidos por mim. O sangue que escorria em sua face lembrava-me do triste motivo que deixava de lado meu título de menina. Concluí que a sociedade era cega para nós, as mulheres.
Não era possível lutar pelos direitos. Não existiam direitos. Só era possível observar o progresso do voto feminino, logo adotado. A escravização escondida era clichê na época. A Segunda Guerra Mundial já havia acabado há doze anos. Os direitos femininos já eram reivindicados, porém timidamente. Minha mãe continuava a apanhar e, como um bônus, passou a ser violentada. Com choro constante, era possível ver em seus olhos a dor que por muito tempo não existiu. A imposição masculina no beco onde vivíamos só aumentava. A mulher ferida era o presente e a morta era o futuro. Com minha mãe não foi diferente. Era violentada dia e noite, depois submetida ao esforço físico por dezesseis horas seguidas, carregando e descarregando caixas e mercadorias. Seu corpo já não aguentava. A velhice chegou mais rápido que o imaginado. O organismo frágil estilhaçava como um cristal ao cair das mãos de uma dama. Cristal nunca lapidado. Com sua morte, as coisas só pioraram.
O corpo foi jogado no rio por aquele que a resgatara das ruas. Eu fui despejada, pois não tinha serventia e ainda reclamava de toda violência. Voltei às ruas, dessa vez mais entristecida. A morte, para mim, foi como uma pancada. O tempo passou e as marcas não sumiam. E não sumiram. Sem ter como sobreviver, tornei a implorar por comida, por dinheiro. Ser negra não era tão fácil. Pelo contrário, o preconceito era enorme. Ele já fora maior, mas era ainda bem visível, o que dificultava a liberdade feminina.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, houve uma ascendência do movimento feminista tanto dentro como fora do país. Muitas mulheres resolveram exigir seus direitos. A luta íngreme contra o preconceito racial, étnico, social e sexual era como uma terceira guerra. Muito difícil, porém vi uma chance de mudar minha vida. Com a fortificação do feminismo, a violência explícita foi diminuindo. Entretanto, para não perder o hábito, fui levada em um dos últimos tráficos “quase” escravistas. Eu acabara de ser sequestrada por um dono de fazenda que me vendeu para um sertanejo. A viagem foi longa e percebi um caminho começando a ser trilhado. Igual ao de minha mãe. Eu apanhava, era violentada e tinha que trabalhar por horas e horas na caatinga sertaneja. A forte insolação fez-me lembrar do acompanhante de minha mãe. O sol era escaldante e árduo; a cada gota de suor que pingava na terra, brotava um reinado de infelicidade. Não sabia como sobreviver às terríveis condições a que estava submetida. Caí. Senti-me cada vez mais sem serventia. Uma escrava de novos tempos a semear lágrimas de sangue e desmotivação.
Por pouco não morri no nordeste. Quem morreu foi quem me tinha comprado. Vi neste ocorrido uma possível liberdade. Cautelosa, fugi e aderi a um grupo de mulheres mais próximo, o Movimento das Ligas Camponesas no Nordeste. Por sorte, descobri nos jornais que encontrava e tentava decifrar, que estes movimentos começavam a ascender, tinham muitas participantes e entendi seus objetivos. Foi minha maior chance de clamar por justiça. Eu começara a lutar a favor do direito feminino, contra o preconceito, a violência. Com novos direitos estabelecidos foi possível reconstruir minha vida. Arrumei um emprego, que me rendeu pouco mais do que minha mãe ganhou do quitandeiro. Aos poucos foi possível conhecer pessoas, mulheres que passaram por problemas muito parecidos. E juntas, passamos a morar em uma casa antiga, pouco melhor que um barraco, mas era o que o dinheiro poderia pagar. O sol fora substituído por espaçadas sombras. O sorriso em meu rosto ficara mais visível.
O mundo mudara, mas muitos dos preconceitos étnicos raciais prevaleciam. Víamos algumas mulheres mortas, decorrente da precariedade da região onde vivíamos. A ascendência do poder militar assustava muitas pessoas. Nas proximidades de nossa moradia, os ataques a grupos feministas eram mais frequentes. Ficamos preocupadas, sem ter a quem ou a que recorrer. Os dias passavam. Era o fim de 1979 e o país tinha um novo governante, uma nova década começaria e, aos trinta e quatro anos, meu medo da violência diminuiu.
Apertada no buraco, atrás da parede falsa de meu guarda-roupa, ouvia frequentemente os tiros atravessando os outros quartos, os outros cômodos. Ouvia os gritos de dor das outras mulheres que aqui residiam. Sentia o cheiro da morte, das injustiças não combatidas totalmente. O medo ressuscitava em meu interior. As lágrimas brotavam como cachoeiras de sangue dos tantos mortos na guerra. Eu implorava pela vida.
“Ela morreu!”; “Não resistiu ao tiro, símbolo do preconceito ainda vigente em nossa nação.”.
Estas eram as manchetes em todos os jornais. O país ficou paralisado com tamanha violência e preconceito contra mulheres que, simplesmente, lutavam a favor de seus direitos. O feminismo não deixava de se fortalecer. Eu, mulher, jornalista e revolucionária, derramei inúmeras lágrimas ao resgatar, trinta e poucos anos depois, a triste e real história de mãe e filha, resquícios de um antigo jornal, para provar, perante todo o país, que a violência prevalecera.
Estamos em um novo século, os problemas na desigualdade de gênero não foram resolvidos, o número de mulheres mortas, violentadas e espancadas ainda é enorme. De que adianta dizer que a mulher é livre e que os direitos são iguais, se atualmente muitas mulheres são submissas aos homens, sendo as “donas de casa”, cuidando dos filhos e dos afazeres domésticos, antes mesmo de pensar em seu próprio trabalho. Será que chamá-las de matriarca da família lhes dá alguma impunidade? Não, pois o desrespeito continua, e matriarca tornou-se sinônimo de “dona de casa”. Ou, para alguns, um objeto sexual, usado e descartado quando convier.
Ser mulher, no Brasil, não é fácil. É preciso estar sujeita a agressões, violências e até mesmo perseguições. Deste modo foi criada uma lei, só para mulheres, para testar se o preconceito diminuía. Adiantou, mas não o cessou. Será necessária uma vingança como a da “Senhora” de José de Alencar? Ou mesmo uma mulher como Margaret Thatcher, com toda sua imponência, firmeza e certeza, uma nova Dama de Ferro? São perguntas impossíveis de responder no contexto em que vivemos. Neste país onde cada gota de sangue e choro feminino derramado, representa um rasgo em nossa bandeira, uma falha em nossa constituição, um tiro em nossa moral.
Não podemos ficar paradas, como “Amas de Leite”, alimentando a violência, desigualdade e o turismo sexual. Aderindo ou não a movimentos feministas, é necessária a luta por nossos direitos. O mundo inteiro precisa refletir, se nos tornaremos livres e iguais ou se precisaremos “atear fogo”. Teremos que fazer o sangue aveludado brotar, dos muitos malditos “barões” que ainda existem, dos que, por muito tempo nos fizeram sofrer. Ou a situação muda, ou quem nos matou precisará morrer, com a mesma facada.
Guilherme Cardoso Contini

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Que seja o ópio, mas para o bem


Utilizando o gerúndio do verbo ler podemos formular frases como: Estou lendo um livro. Mas não são muitos os que as fazem, pois mesmo no século XXI a leitura se apresenta distante, assim como o ato de escrever. Inicialmente com caráter pictográfico, a escrita se mostrou em crescente modificação. E junto a ela, a interpretação das informações caracterizou-se um benefício ao longo dos anos. Bastou uni-la ao poder da leitura para o surgimento dos livros e das mais diversas transformações.
Durante o crescimento e a elaboração dos valores, várias pessoas tornam-se seres críticos, pensantes e com opinião própria. Na maioria são grandes as influências de narrativas nas quais embarcamos desde pequenos. Esse mundo ficcional, para Platão, afastava as pessoas da verdade, porém, para Aristóteles, apenas tornava mais compreensiva a realidade. Tangenciando as contradições podemos afirmar o quão imortal tornam-se as coisas ou nós mesmos ao término de uma dessas histórias.
Com o tempo, o acesso aos diferentes textos amplificou-se de maneira extraordinária. Em toda cidade é possível encontrar ao menos uma biblioteca. E no cotidiano, seu acervo mostrou como podemos ampliar o vocabulário e os conhecimentos.
Sim, “leitura, antes de mais nada, é estímulo” como disse Ruth Rocha. É exemplo para amplificar os cidadãos intelectualizados que “engrandecem a alma” por causa dela, como divulgou Voltaire. Tornar-se um leitor crítico transforma qualquer causa em consequência, ideia em realização, basta o empenho de cada um.
Filosoficamente a dedicação se dá pelo questionamento. E pela literatura, como retificou Clarice Lispector, “Enquanto tiver perguntas e não houver respostas, continue a escrever”. É pelo exercício desta habilidade que nos desenvolvemos da melhor maneira.
Assim, é visível um problema: a quantidade de pessoas que nem se interessa ou se preocupa com a escrita ou leitura. É gente sem “fome” de conhecimento por intermédio delas, que, para Carlos Drummond de Andrade, “são uma fonte inesgotável de prazer, mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede”. Não se deve radicalizar, somente permitir às crianças de hoje a leitura que muitas não tiveram antigamente. O importante é ser crítico e para essa liberdade, convém uma boa dose de escritas para se ler.




terça-feira, 2 de abril de 2013

Nice e a vida - Capítulo III - Parte cinco


    Acordei, dessa vez antes que ele. Tomei um banho, preparei um café e fiquei a sua espera. Como ele não acordava, comecei a observar sua casa, seus móveis, suas coisas. Foi aí que encontrei um bilhete, próximo a uns cadernos em uma mesa de canto. Mais especificamente um recado. Intitulado como: “para um tolo”, era de autoria do Doutor C. Este avisava-lhe do tempo que tinha para se entregar, caso contrário eles já haviam descoberto o local onde mora, pois o tinham visitado na noite passada. Suspirei. Meu espanto foi enorme. O nervosismo acabara de iniciar e percebi o perigo que estávamos correndo. Observando a data, descobri que essa “noite passada” foi ontem, depois que dormimos. Lágrimas correram por minha face e tive medo de estar sendo conivente para uma situação como em Hamlet, onde a morte foi a protagonista e, ao mesmo tempo, foi o clímax da situação. Bastou o poeta acordar para descobrir por mim, o que acabara de encontrar.
   Não conseguimos ao menos encostar nos lábios a comida. O ódio tornava-se visível.        Pegamos algumas coisas, entre roupas e documentos importantes para então, sairmos daquela casa sem o intuito de voltar. Os passos largos e apressados demonstravam a rigidez de nosso amor. Conseguimos, inicialmente, um hotel em uma cidade vizinha, porém afastada da circulação comercial e turística. Instalamos-nos e por horas não trocamos uma sequer palavra sobre o acontecido, ou o que poderia vir a acontecer. Nossos lábios úmidos tocaram-se e, por um segundo, a conexão entre nossas almas era mais forte. Um beijo serviu como protagonista para nossa noite. Durante a noite, sem conseguir dormir, passei meu tempo entretida em um livro que comprara em uma loja local. Adormeci junto às palavras, junto ao poeta.

Continua na próxima semana...