Essa narrativa minha participou do 8o Prêmio Igualdade de Gênero. Na temática estavam as relações de gênero entre homens e mulheres tão polêmicas atualmente. Espero que gostem e apreciem esse forte e marcante texto, em busca da valorização feminina e término do preconceito ainda vigente.
O
sangue feminino ainda injustiçado
Percebi o tiroteio
quando a primeira bala acertou a janela do meu quarto. Foi o tempo de saltar da
cama e me esconder atrás de uma parede falsa dentro do meu guarda-roupa. A
previsão de muitas vezes acabara de se tornar realidade. Senti-me segura
somente quando agarrei meu caderno, já amarelado, e um pedaço de lápis com o
qual comecei a escrever e reviver momentos dramáticos de minha vida.
A primeira coisa que me
veio a mente foi minha mãe. Lembrava-me
do rosto cansado, das tantas lágrimas derramadas, de toda violência sofrida.
Dos espancamentos que sofrera, das constantes humilhações por ser pobre e negra
no Brasil. O contínuo barulho dos tiros
fazia-me lembrar do sofrimento que a corroeu por muitos anos, assim como as
desigualdades e agressões. Minha infância foi difícil. Em pleno auge da Segunda
Guerra Mundial, eu ficava horrorizada com as notícias que ouvia, das pessoas
sofrendo, morrendo. Só podia imaginar o sangue escorrendo nos bueiros, como a
chuva tranquila e refrescante que aterrorizava os moradores de rua no mundo
inteiro. Os corpos estirados no chão, os pedaços de seres humanos em cada
esquina, era difícil imaginar como meu pai reagia a tudo isto, enquanto
participava dos conflitos. Enquanto atacava a Itália, que muito me custou
descobrir o que era, pois eu não estudara, não havia professor disposto a isto,
todos ficavam com medo de sair às ruas, de ensinar pobres coitados, sem
dinheiro algum. A situação só piorava, mas para quem já estava esperando pelo
pior, não fazia diferença. Era triste lembrar que, depois da morte de meu pai
na guerra, fomos expulsas do cubículo onde morávamos e passamos dias
mendigando, em busca do alimento de cada dia e de um trabalho para uma pobre
mulher, minha mãe. Sentia-me horrível em vê-la sendo maltratada pelos homens
que passavam pelas ruas. A cada chute que levava, uma nova lágrima escorria
pela minha face em busca de um refúgio, com medo de tanta maldade. Não existiam
direitos para as mulheres, não havia justiça nas ruas, onde o sol nascia cada
vez mais próximo. O calor aderiu à pele já suada, a refletir com um espelho
d’água sob o sol cotidiano. Os dias passavam e a cada minuto ficava mais
difícil, para minha mãe, conseguir um emprego. Até que um homem qualquer
ofereceu o cargo de carregadora de encomendas na quitanda da qual era dono.
Garanto que foi por pena, por todo o tempo que nos enxotou da frente de seu
comércio de onde relutávamos em sair. O fato é que com este emprego era
possível comprar umas torradas de pão velho, sobrando algumas moedas para o
jornal, material indispensável em nosso dia-a-dia. E nos aquecia ao anoitecer.
Nossa vida mudara. De
pedintes, fomos promovidas a “escravas”, com minha mãe recebendo aquela
miséria. Para nós não existia nação, fé ou mesmo patriotismo. Existia a mulher
sendo inferior, como se ainda comesse, dia e noite, a maçã, já globalizada, de
Eva. E para piorar nossa situação e resolver suas dívidas sujas, o quitandeiro
obrigou o casamento com minha mãe. Não que isso fosse sinônimo de liberdade,
pois a mesma estava tão distante. Nem que ela tivesse outra opção a escolher. A
rotina da coitada não mudara, apenas ganhara o título de “mulher do
quitandeiro”. Novidade foram os pontapés, socos e tapas recebidos do homem que
se dizia marido. Se uma laranja caísse de uma encomenda e porventura
estragasse, a violência começava. Cada vez pior. As marcas e os hematomas só
eram percebidos por mim. O sangue que escorria em sua face lembrava-me do
triste motivo que deixava de lado meu título de menina. Concluí que a sociedade
era cega para nós, as mulheres.
Não era possível lutar
pelos direitos. Não existiam direitos. Só era possível observar o progresso do
voto feminino, logo adotado. A escravização escondida era clichê na época. A
Segunda Guerra Mundial já havia acabado há doze anos. Os direitos femininos já
eram reivindicados, porém timidamente. Minha mãe continuava a apanhar e, como
um bônus, passou a ser violentada. Com choro constante, era possível ver em
seus olhos a dor que por muito tempo não existiu. A imposição masculina no beco
onde vivíamos só aumentava. A mulher ferida era o presente e a morta era o
futuro. Com minha mãe não foi diferente. Era violentada dia e noite, depois
submetida ao esforço físico por dezesseis horas seguidas, carregando e descarregando
caixas e mercadorias. Seu corpo já não aguentava. A velhice chegou mais rápido
que o imaginado. O organismo frágil estilhaçava como um cristal ao cair das
mãos de uma dama. Cristal nunca lapidado. Com sua morte, as coisas só pioraram.
O corpo foi jogado no
rio por aquele que a resgatara das ruas. Eu fui despejada, pois não tinha
serventia e ainda reclamava de toda violência. Voltei às ruas, dessa vez mais
entristecida. A morte, para mim, foi como uma pancada. O tempo passou e as marcas
não sumiam. E não sumiram. Sem ter como sobreviver, tornei a implorar por
comida, por dinheiro. Ser negra não era tão fácil. Pelo contrário, o
preconceito era enorme. Ele já fora maior, mas era ainda bem visível, o que
dificultava a liberdade feminina.
Desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, houve uma ascendência do movimento feminista tanto dentro como
fora do país. Muitas mulheres resolveram exigir seus direitos. A luta íngreme
contra o preconceito racial, étnico, social e sexual era como uma terceira
guerra. Muito difícil, porém vi uma chance de mudar minha vida. Com a
fortificação do feminismo, a violência explícita foi diminuindo. Entretanto,
para não perder o hábito, fui levada em um dos últimos tráficos “quase”
escravistas. Eu acabara de ser sequestrada por um dono de fazenda que me vendeu
para um sertanejo. A viagem foi longa e percebi um caminho começando a ser
trilhado. Igual ao de minha mãe. Eu apanhava, era violentada e tinha que
trabalhar por horas e horas na caatinga sertaneja. A forte insolação fez-me
lembrar do acompanhante de minha mãe. O sol era escaldante e árduo; a cada gota
de suor que pingava na terra, brotava um reinado de infelicidade. Não sabia
como sobreviver às terríveis condições a que estava submetida. Caí. Senti-me
cada vez mais sem serventia. Uma escrava de novos tempos a semear lágrimas de
sangue e desmotivação.
Por
pouco não morri no nordeste. Quem morreu foi quem me tinha comprado. Vi neste
ocorrido uma possível liberdade. Cautelosa, fugi e aderi a um grupo de mulheres
mais próximo, o Movimento das Ligas
Camponesas no Nordeste. Por sorte, descobri nos jornais que encontrava e
tentava decifrar, que estes movimentos começavam a ascender, tinham muitas
participantes e entendi seus objetivos. Foi minha maior chance de clamar por
justiça. Eu começara a lutar a favor do direito feminino, contra o preconceito,
a violência. Com novos direitos estabelecidos foi possível reconstruir minha
vida. Arrumei um emprego, que me rendeu pouco mais do que minha mãe ganhou do
quitandeiro. Aos poucos foi possível conhecer pessoas, mulheres que passaram
por problemas muito parecidos. E juntas, passamos a morar em uma casa antiga,
pouco melhor que um barraco, mas era o que o dinheiro poderia pagar. O sol fora
substituído por espaçadas sombras. O sorriso em meu rosto ficara mais visível.
O
mundo mudara, mas muitos dos preconceitos étnicos raciais prevaleciam. Víamos
algumas mulheres mortas, decorrente da precariedade da região onde vivíamos. A
ascendência do poder militar assustava muitas pessoas. Nas proximidades de
nossa moradia, os ataques a grupos feministas eram mais frequentes. Ficamos
preocupadas, sem ter a quem ou a que recorrer. Os dias passavam. Era o fim de
1979 e o país tinha um novo governante, uma nova década começaria e, aos trinta
e quatro anos, meu medo da violência diminuiu.
Apertada
no buraco, atrás da parede falsa de meu guarda-roupa, ouvia frequentemente os
tiros atravessando os outros quartos, os outros cômodos. Ouvia os gritos de dor
das outras mulheres que aqui residiam. Sentia o cheiro da morte, das injustiças
não combatidas totalmente. O medo ressuscitava em meu interior. As lágrimas
brotavam como cachoeiras de sangue dos tantos mortos na guerra. Eu implorava pela
vida.
“Ela
morreu!”; “Não resistiu ao tiro, símbolo do preconceito ainda vigente em nossa
nação.”.
Estas
eram as manchetes em todos os jornais. O país ficou paralisado com tamanha
violência e preconceito contra mulheres que, simplesmente, lutavam a favor de
seus direitos. O feminismo não deixava de se fortalecer. Eu, mulher, jornalista
e revolucionária, derramei inúmeras lágrimas ao resgatar, trinta e poucos anos
depois, a triste e real história de mãe e filha, resquícios de um antigo
jornal, para provar, perante todo o país, que a violência prevalecera.
Estamos
em um novo século, os problemas na desigualdade de gênero não foram resolvidos,
o número de mulheres mortas, violentadas e espancadas ainda é enorme. De que
adianta dizer que a mulher é livre e que os direitos são iguais, se atualmente
muitas mulheres são submissas aos homens, sendo as “donas de casa”, cuidando
dos filhos e dos afazeres domésticos, antes mesmo de pensar em seu próprio
trabalho. Será que chamá-las de matriarca da família lhes dá alguma impunidade?
Não, pois o desrespeito continua, e matriarca tornou-se sinônimo de “dona de
casa”. Ou, para alguns, um objeto sexual, usado e descartado quando convier.
Ser
mulher, no Brasil, não é fácil. É preciso estar sujeita a agressões, violências
e até mesmo perseguições. Deste modo foi criada uma lei, só para mulheres, para
testar se o preconceito diminuía. Adiantou, mas não o cessou. Será necessária
uma vingança como a da “Senhora” de José de Alencar? Ou mesmo uma mulher como
Margaret Thatcher, com toda sua imponência, firmeza e certeza, uma nova Dama de
Ferro? São perguntas impossíveis de responder no contexto em que vivemos. Neste
país onde cada gota de sangue e choro feminino derramado, representa um rasgo
em nossa bandeira, uma falha em nossa constituição, um tiro em nossa moral.
Não
podemos ficar paradas, como “Amas de Leite”, alimentando a violência,
desigualdade e o turismo sexual. Aderindo ou não a movimentos feministas, é
necessária a luta por nossos direitos. O mundo inteiro precisa refletir, se nos
tornaremos livres e iguais ou se precisaremos “atear fogo”. Teremos que fazer o
sangue aveludado brotar, dos muitos malditos “barões” que ainda existem, dos
que, por muito tempo nos fizeram sofrer. Ou a situação muda, ou quem nos matou
precisará morrer, com a mesma facada.
Guilherme
Cardoso Contini